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Publicado em 15 de fevereiro de 2025 às 05:00
Há alguns anos peguei um Uber com um cara lindo ao volante. Eu nem parecia a passageira sempre calada nas corridas pela cidade: com ele, entrei a falar pelos cotovelos, como se isso aumentasse as chances de o homem me dar o seu telefone. Puxei um assunto do seu universo sem imaginar os desdobramentos que ele teria. >
“Tenho vontade de ser motorista por aplicativo, mas tenho medo. Imagino o horror de ficar presa no meu próprio carro com um cara que pode ser um assediador. É muito perigoso para mulheres”, comentei. Sua resposta me surpreendeu: “Olha, homem também é assediado, viu?”.>
Eu sei que homens também sofrem por assédio. A minha surpresa não foi essa, foi ele colocar o sofrimento dos dois gêneros em pé de igualdade. Até a revogação da estatística ou a chegada da primavera feminista, continuaremos sendo as maiores vítimas em número de ocorrências, em termos de gravidade e em qualquer outra medida que se escolha. Infelizmente.>
“Mas como foi esse assédio?”, disparei. O rapaz me conta que, um dia, um senhor pede para viajar no banco da frente de seu carro, e ele não vê problema. Momentos depois, o homem toca o seu joelho e propõe sexo em troca de dinheiro. O motorista para o carro na hora, obriga o cidadão a pagar pela corrida inteira e o deixa no meio da rua. >
Assédio pressupõe, quase sempre, um jogo de poder sobre alguém mais fraco ou vulnerável. Aquele cabra nervosinho que bate na esposa não vai dar o mesmo tapa na bunda de uma delegada. O assédio de um homem contra uma mulher comum é fácil de entender: eles são mais fortes tanto no físico quanto no imaginário social.>
Quando digo fortes no imaginário social, quero dizer, por exemplo, que faço judô há 21 anos, mas, se cruzar à noite, numa rua deserta, com qualquer homem ainda que mais magricela do que eu, meu coração vai palpitar com medo de um ataque, e eu vou esquecer as duas décadas de treinos em arte marcial num instante.>
Por outro lado, o menor dos sujeitos, o mais baixo pigmeu pode se deparar, na sombra da noite, com Gracyanne Barbosa, a gigante comedora de ovos, marombeira do BBB e ex-mulher de Belo, e ter a pachorra de paquerá-la sem um rasgo de medo de apanhar de um par de bíceps que levantam facilmente três de mim. Todo mundo sabe que é assim.>
Mas um homem assediar o outro é uma situação completamente diferente. A começar pelo fato de que o gay não vai fazer como um homem hétero faz com uma mulher, como chegar metendo a mão. Se ele fizer isso, sabe que pode apanhar. Não é só mulher que tem medo de homem hétero. Todo mundo tem medo de homem hétero.>
Os gays que cantam esses homens são uma espécie de redenção para mim, porque deixam os heterossexuais, finalmente, completamente desconfortáveis, do jeito que ficamos. São praticamente a única chance de mostrar a eles o que passamos. Um toque no corpo do hétero por um gay e ele se sente tão violado quanto a gente quando recebe uma apalpada. Os gays estão fazendo justiça social sem imaginar.>
A cena que o motorista me descreveu foi um mero incômodo. Se fosse eu no lugar dele, ainda que recebesse uma proposta de sexo educada assim, eu ficaria em pânico, com a certeza de que eu até poderia negar, mas, se o homem quisesse mesmo, iria em frente e, pelo menos, passaria a mão em mim antes que eu pudesse parar o carro, tirar o cinto, lutar ou correr.>
O motorista que eu já não achava tão bonito assim confessou que não sentiu um pingo de medo. “Então, me desculpe, mas você não sofreu um assédio. Você viveu uma abordagem muito desagradável, mas nem chegou perto de temer pela sua integridade”, esclareci. Ele relutou em concordar mas, na situação que viveu, ele nunca deixou de ter escolhas. Não, senhor motorista gato, você não sofreu um assédio porque o poder não saiu da sua mão. Nem o valor da corrida você perdeu. No dia em que um gay mais forte que você te der um mata-leão do banco de trás para pegar no seu pinto, a gente conversa. Mas isso não vai acontecer. Como falei, todo mundo, até os gays, tem medo de homem hétero.>