Skynet, Starlink e soberania: a rede X da questão

Que a soberania nacional saia vitoriosa ao final dessa batalha, deixando o alerta para os empresários que atuam no país, de que, toda vez que ocorrer abusos e descumprimentos legais, adotaremos como lema a frase que, na ficção, consagrou Arnold Schwarzenegger: “I will be back”.

Publicado em 22 de setembro de 2024 às 05:00

O primeiro filme da saga O Exterminador do Futuro, estreou em 1984 dirigido por James Cameron. A ficção-científica, estrelada por Arnold Schwarzenegger, apresentava um cenário apocalíptico onde uma rede avançada de sistemas de computadores, similar ao que hoje poderia ser entendido como uma inteligência artificial (sic), se torna autoconsciente e decide eliminar a humanidade. Dentro da trama, a Skynet, também chamada Titan, foi criada pela empresa Cyberdine para ser o primeiro sistema de defesa automatizado do mundo. Contudo, para assegurar sua própria sobrevivência, já que alguns cientistas da Cyberdine tentavam tirá-la do ar, e por entender que a humanidade é uma ameaça devido ao crescente número de pessoas, a Skynet desencadeia o Dia do Julgamento, na tentativa de exterminar a maioria da população humana. Como é uma história de viagem no tempo, no futurístico dia de 29 de agosto de 1997 a Skynet lança bombas nucleares sob a humanidade, deixando para trás alguns poucos sobreviventes que, no futuro, formam a resistência liderada por John Connor.

Desde o enorme sucesso do filme, o dia 29 de agosto se tornou um ícone. O Dia do Julgamento, nome dado para o dia em que a Skynet se torna uma inteligência, ficou marcado no calendário da ficção científica e, ano a ano, revive na memória dos fãs com muitas referências à data e à Skynet, fato comprovado pela grande quantidade de pesquisas sobre temas relacionados ao filme e pela enxurrada de comentários que explodem na internet.

Ainda que se trate de uma ficção, seguindo a sabedoria popular, a vida imita a arte, e muitas vezes o contrário também se torna uma máxima.

Assim é que o dia 29 de agosto, agora em 2024, ficará marcado pelo desdobramento de uma outra trama, que assume novos contornos em tempos de ChatGPT e se define pela presença da Inteligência Artificial, mais ubíqua do que nunca, interferindo em todos os espaços e instâncias da vida cotidiana. Em tempos de sensores, drones, sistemas de IA e algoritmos que modulam afetos e escolhas, desde recomendações de filmes e restaurantes até alvos de guerra e candidaturas eleitorais, surgem, dentre outras, sérias implicações políticas, humanitárias, éticas, jurídicas e de soberania nacional.

No dia 29 de agosto da trama atual, quinta-feira, às 20h07, acabou o prazo dado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, à rede social X (antigo Twitter), do empresário bilionário Elon Musk, para cumprir a ordem judicial de instituir um representante legal no Brasil.

A contenda entre Moraes e Musk vem se acirrando desde abril, quando o bilionário passou a ser investigado no inquérito que apura condutas quanto aos crimes de obstrução de justiça, organização criminosa e incitação ao crime, sob suspeita de instrumentalizar a rede X para fazer campanha de desinformação contra o Supremo e o Tribunal Superior Eleitoral. No curso das apurações. Moraes determinou a suspensão de várias contas de usuários do X que usavam a rede para infringir a lei ao compartilhar informações falsas e propagar ideias golpistas contra as instituições democráticas. O dono do X, além de não cumprir as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspensão de contas, utilizou a rede X para atacar o judiciário brasileiro e para afirmar que o ministro do STF deveria renunciar ou sofrer impeachment porque “traiu descarada e repetidamente a Constituição e a população do Brasil”. Em uma demonstração de total descaso pelas leis e pelas autoridades brasileiras, o bilionário foi ainda mais longe e, no dia 17 de agosto, fechou o escritório do X no Brasil. A briga prosseguiu diante da recusa do empresário em estabelecer um representante legal para responder oficialmente pelos atos da plataforma, atitude “ilícita e fraudulenta” que, para o ministro, caracterizava a “dolosa intenção de eximir-se da responsabilidade pelo cumprimento das ordens judiciais expedidas”. A resposta de Moraes não se fez esperar. A contar das 20h de quarta-feira, dia 28 de agosto, estabeleceu um prazo de 24 horas para que o dono do X informasse o novo representante da plataforma no Brasil, sob pena de suspensão do site no país. De forma inusitada, Moraes utilizou o perfil do STF na própria plataforma X para intimar Elon Musk. Já a resposta do empresário foi irônica e debochada, ao publicar em seu perfil na rede imagens criadas artificialmente, comparando Moraes a vilões de filmes.

Nesse embate atual, que ocorre fora da ficção, às 20h07 desta quinta-feira, 29 de agosto, marcou o fim do prazo dado por Moraes, para Elon Musk responder às solicitações e não ter a plataforma retirada do ar, sem, contudo, ocorrer resposta por parte da empresa no sentido de cumprir com a legislação. Sob a justificativa de assegurar o pagamento de multas, aplicadas pelo tribunal contra a rede X, também se tornou conhecida a decisão do ministro em determinar o bloqueio das contas bancárias da Starlink Holding, empresa de comunicação via satélite que também pertence a Elon Musk. 

O último golpe dessa saga que parece longe de um final e, que certamente, terá continuação, foi dado nesse último 30 de agosto pelo Ministro Alexandre de Moraes. Para apreensão de alguns e alegria de muitos, Moraes seguiu os passos da mãe do líder da resistência na continuação da saga, agora com o filme O Exterminador do Futuro 2: O Dia do Julgamento Final, Sarah Connor (Linda Hamilton) e do T-800 de Schwarzenegger, e determinou a retirada da rede do ar. “Determino: a suspensão imediata, completa e integral do funcionamento do ‘X Brasil Internet Ltda.’ em território nacional, até que todas as ordens judiciais proferidas nos presentes autos sejam cumpridas, as multas devidamente pagas e seja indicado, em Juízo, a pessoa física ou jurídica representante em território nacional.”, escreveu o ministro. Intimou ainda a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) a notificar as empresas que prestam serviços de internet no país no sentido de adotar medidas para fazer cumprir a decisão. 

Longe de querer atribuir ao ministro do STF qualidades de herói, o certo é que já passou do tempo de o Brasil fazer cumprir a legislação e responsabilizar as “big techs”, como são chamadas as gigantes da tecnologia, pelos discursos de ódio e pelos conteúdos falsos que veicula em suas plataformas. Ao contrário do que alguns acreditam, existem várias legislações dentro do arcabouço jurídico brasileiro que respaldam a decisão de Moraes, a exemplo do Marco Civil da Internet, do Código de Defesa do Consumidor e da Lei Geral de Proteção de Dados, assegurando que nenhuma empresa ou plataforma tem o direito de funcionar no Brasil sem representação. Também o Código Civil Brasileiro regulamenta e detalha como deve ser o funcionamento de empresas no país, e o Marco Civil prevê inclusive a suspensão das atividades em caso de recusa no cumprimento da legislação. Assim, como costuma dizer Alexandre de Moraes, “as redes sociais não são terra sem lei, nem terra de ninguém”. A Lei deve valer para todos e, qualquer empresário que se recuse a cumprir uma determinação legal não está desafiando o judiciário, mas sim desrespeitando a soberania do país. Como bem já alertou o jornalista e ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, em reação às declarações de Elon Musk contra o Judiciário brasileiro, “O Brasil não é a selva da impunidade, e nossa soberania não será tutelada pelo poder das plataformas de internet e do modelo de negócio das big techs”.

Embora a Skynet e o Dia do Julgamento permaneçam no reino da ficção, a contenda entre Moraes e Musk ocorre no mundo real, particularmente, em um momento político de eleições no Brasil e também nos Estados Unidos, o que acresce relevância à disputa, considerando a afinidade de Elon Musk com a direita radical e seu apoio aos candidatos, Trump e Bolsonaro, extremistas publicamente afeitos a milicias digitais e que já fizeram uso das redes para propagar discursos de ódio e ideias golpistas.

Dado a influência e o poder imenso das plataformas digitais, que cresceram no país sob a égide do neoliberalismo, com sistemas algorítmicos inclinados aos valores elitistas da direita, somos obrigados, na defesa pela soberania tecnológica e econômica do Brasil, a acompanhar de perto os desdobramentos dessa saga, nos posicionando em prol da regulação e da fiscalização do funcionamento das redes, e também da punição, toda vez que violar princípios do direito e da democracia do Brasil. 

Que a soberania nacional saia vitoriosa ao final dessa batalha, deixando o alerta para os empresários que atuam no país, de que, toda vez que ocorrer abusos e descumprimentos legais, adotaremos como lema a frase que, na ficção, consagrou Arnold Schwarzenegger: “I will be back”.

Rita Leal é professora da UERJ e pesquisadora visitante na FACED/UFBA, grupos de pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologias (GEC). Email: [email protected]