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Da Redação
Publicado em 27 de novembro de 2022 às 14:49
Gilberto Gil caminhava com a esposa no Catar, quando um homem que podia ser seu neto começou a berrar no seu ouvido o nome do candidato a presidência derrotado na última eleição. O músico seguiu indiferente e o agressor passou a urrar “Lei Rouanet!”, em referência ao programa nacional de incentivo à cultura, que certamente ele nunca leu, mas aprendeu a repetir como papagaio. Depois de esgotar seu repertório de “argumentos” apela para a última construção verbal que é capaz: o palavrão. Sabemos disso tudo porque orgulhoso da própria incivilidade, o ignorante se filmou. A vítima é, mais do que um dos maiores músicos vivos no planeta, um homem de 80 anos.
Não foi um fato isolado. Recentemente, ministros do STF foram xingados e perseguidos de forma semelhantes por grupos de brasileiros em Nova Yorque, nos seus hóteis, em restaurantes ou nas calçadas. Há alguns dias, o ex-presidente da Câmara dos Deputados foi hostilizado por hóspedes de um hotel de luxo na Praia da Forte, durante o café da manhã.
Em todos os casos citados, os agressores são pessoas ricas, em espaços de privilégio, vivendo o delírio de que são heróis do povo brasileiro, exercendo a “liberdade de expressão” enquanto “democraticamente” pregam golpes de Estado e o desrespeito à vontade da maioria da população. Só não carregam cartazes pedindo “voto censitário” juntamente com os de “intervenção militar”, porque não sabem que é com isso que sonham.
As vítimas, por sua vez, têm em comum o fato de representarem alguma espécie de institucionalidade formal como a política e judiciário ou informal como a ciência, o jornalismo, a cultura e a ancestralidade . Mas, principalmente, todos representam a racionalidade. Paradoxalmente, a arte de Gil ou de Chico Buarque ( também já hostilizado), a emoção em essência, também faz pensar e muitas vezes expõe o ridículo dos preconceitos e do golpismo. A arte também pode evidenciar como Caetano cantou antes a frustração de quem olha, mas não pode ver, não consegue alcançá-la
O problema vai muito além das últimas eleições presidenciais. Vem de antes. A verdade é que, nos últimos anos, muita gente com faixa de renda suficiente para viajar à Europa durante uma pandemia, passou a formar uma constelação de grupos de pessoas mimadas. São incapazes de entender o que é democracia ou o que é a liberdade de expressão. Incapazes de aceitar a existência de limites éticos e legais às suas vontades. A distorção fez uma luta contra ritualismos exagerados se converter em puro desrespeito.
Qualquer interesse frustrado, mesmo que contrário à lei, é tratado como injustiça suprema e autoriza as ofensas, os xingamentos e os constrangimentos. As institucionalidades teriam o dever de subserviência. Qualquer espécie de reação das vítimas, seja um “perdeu mané”, seja um discurso, um poema, seja um argumento, seja a negativa, seja até mesmo o silêncio, é interpretada como a confirmação de que existe uma ditadura oprimindo os seus desejos. Em um círculo viciado, todos os absurdos ficam legitimados pelo seu próprio absurdo.
O ataque a Gilberto Gil pode ser o exagero capaz de explodir esse círculo. Às vezes precisamos de um choque de realidade para conseguir refletir. De todos os artistas brasileiros, Gilberto Gil talvez seja o que mais representa a paz e a sabedoria. Agressão não é liberdade de expressão. Constranger pessoas em restaurantes não é uma forma legítima de política. Democracia não é o regime de satisfação de todas as nossas vontades, ela impõe limites também.
É impossível não compreender agora o quanto é violenta e infantil essa cultura política. Se queremos ter realmente democracia, precisamos voltar à razão. Do contrário, a pessoa nefasta que dá título a uma das músicas de Gil estará encarnada em toda a nossa sociedade, ou pelo menos na sua parcela descrita nesse texto. “ Basta ver-te em teu mundo interno pra sacar teu inferno. Teu inferno é aqui, pessoa nefasta (...) Solta, com a alma no espaço, vagarás, vagarás, te tornarás bagaço, pedaço de tábua no mar, dia após dia boiando, acabarás perdendo a ansiedade, a saudade, a vontade de ser e de estar livre”. Só Gilberto Gil pode nos salvar.
Rafson Ximenes é defensor público geral da Bahia