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Rafson Ximenes
Publicado em 20 de novembro de 2023 às 09:48
Paulinho Kienby é um homem negro de 20 anos que cresceu na Boca do Rio. Se fosse branco criado na Graça, ainda seria um menino e provavelmente estaria fazendo alguma faculdade ou talvez intercâmbio no exterior. Mas, os pretos de bairros populares têm que crescer mais cedo. Desde os 15 anos, como homem, trabalhava. Era boleiro de Beach Tennis. De boleiro, passou a ser atleta e professor. Há 3 meses, foi convocado pela CBBT para a seleção brasileira que disputaria uma Copa do Mundo em Fortaleza e virou campeão mundial do esporte que mais cresce no país. Contudo, nada é simples para jovens como ele.
No último final de semana, houve uma competição entre seleções estaduais e, apesar do excelente desempenho, Paulinho não foi convocado para representar a Bahia. Houve comoção entre os fãs, mas não exatamente surpresa. 11 entre 10 pessoas que participam de competições relatam uma disputa entre duas federações rivais pelo domínio do Esporte: A CBBT, pela qual ele foi campeão, e a CBT (que vem do Tênis tradicional). Dizem que há mecanismos de pressão para que os atletas não disputem torneios organizados pelos rivais. Ele joga nas duas e, especula-se, o motivo da não convocação teria sido justamente o título mundial pelo rival.
Se é tão comentada essa política, os atletas não deveriam fazer uma opção e arcar com as consequências delas? Isso faria sentido no esporte que consagrou Gustavo Kuerten, Thomás Belucci e tantos outros filhos de famílias com sobrenomes europeus, quando ele era considerado exclusivo para famílias ricas. Mas, Paulinho não vem daí. Nenhum dos seus parentes teve fábrica, banco, fazenda ou Casa de Engenho. O primeiro deles que chegou ao Brasil foi sequestrado da África. O sobrenome Kienby vem da Ruanda. Ao longo do tempo, sua família foi escravizada, proibida de estudar, de frequentar clubes sociais, de ter terras, de saber a própria origem, proibidos de cultuar a sua religião, de saber a própria história...
As opções para Paulinho e para quem chega de carro na aula de tênis são bem diferentes. Uns podem esperar o próximo torneio. Podem ter paciência enquanto se desenvolvem. Podem abrir mão do agora para ganhar mais no futuro. Todavia, Paulinho e milhões como ele precisam ter pressa porque não ganham mesada. Ele precisa jogar todos os torneios e dar todas as aulas que puder. Precisa ganhar urgentemente as premiações e os patrocínios, para sobreviver hoje, não apenas para investir no futuro. Ele não é proibido de entrar em uma quadra de tênis, como certamente seus avós e talvez até seus pais tenham sido um dia, mas ainda não pode escolher jogar os torneios de uma ou outra federação. A história do país já escolheu por ele.
Certamente, quando se estabeleceu esse enfrentamento entre as federações ninguém a viu como forma de discriminação. O objetivo não era prejudicar jovens negros. Mas, para ter efeitos racistas, uma política não precisa de pessoas que odeiem uma determinada raça. As consequências surgem em virtude da estrutura. Independentemente da intenção dos dirigentes, essa pressão sobre os atletas atingirá de forma muito mais dura os negros do que os brancos. Acontece o mesmo com as políticas penais ou as de austeridade fiscal que reduzem e precarizam serviços públicos, por exemplo. Aliás, nosso personagem só chegou aonde chegou porque foram construídas quadras públicas no seu bairro.
O Esporte mais uma vez se apresenta como um recorte potente da vida. Cada saque, cada ponto de Paulinho Kienby possuem significados políticos. Para um negro, segurar uma raquete já é um ato de coragem. Ele representa uma luta que vem de séculos contra inúmeras barreiras. Como ele, há milhões de pessoas negras lutando e resistindo, muitas vezes sem se dar conta de que lutam e resistem, contra opressões de pessoas que talvez nem percebam que oprimem. Zumbi vive em cada um deles. Se a convocação não veio ou se “Palmares não existe mais, faremos Palmares” e convocações de novo. Espero que os dirigentes e todos nós reflitamos e, principalmente, mudemos as coisas.