Anatomia de uma Queda

Nós queremos culpar alguém. Nós queremos odiar. Nós nos sentimos superiores ao apontar alguém como vil

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  • Rafson Ximenes

Publicado em 22 de julho de 2024 às 05:00

Um professor e escritor frustrado foi encontrado morto pelo seu filho, deficiente visual, de apenas 11 anos. Tudo indica que morreu ao pular ou ser empurrado da janela de casa. Havia apenas uma pessoa no local, sua mulher, uma escritora germânica bem sucedida e, logo mais, suspeita de homicídio. Esse é o enredo do filme francês Anatomia de uma Queda de Justine Triet, estrelado pela alemã Sandra Huller, vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original. Uma oportunidade para compreender melhor o direito penal.

Nos grandes filmes, cada detalhe tem alguma função. O fato de a acusada vir de outro país não foge à regra. Para começar, os réus costumam ser tratados como os “diferentes”, “anormais”, com padrões morais diversos, enfim, como “estrangeiros”. Brasileiros que sofrem imputações penais no Brasil são tratados como se fossem alemães. Aliás, talvez seria melhor dizer que réus brasileiros são tratados como africanos, uma vez que a nossa justiça é bem mais severa com negros que com brancos, assim como as demonstrações de xenofobia por aqui. São diferentes de “nós”, por isso merecem sofrer.

A opção também chama atenção para a dificuldade da acusada com a língua falada no julgamento. Ela sabe falar francês, mas não fica confortável. Às vezes, pede para falar em inglês, o que obriga os demais a fazer um esforço maior para acompanhar seus depoimentos. No mundo real, nem sempre há disposição para que se faça esse esforço de compreensão da versão do réu. Ao contrário, existe má vontade, afinal é apenas o “outro”. Por outro lado, é difícil para os acusados entender aquelas palavras difíceis e aqueles ritos esquisitos.

A principal prova do julgamento é uma gravação sonora de uma briga do casal feita pelo falecido, sem conhecimento da esposa, na véspera da tragédia. Os sons são claramente inconclusivos e não há imagens. Mas, como há barulho de uma briga, a acusação logo conclui que ela batia no marido e nem cogita que poderia ser o oposto. Como em todos os processos, quem acusa é parte, logo não é imparcial. Uma curiosidade é que o marido se queixa de não conseguir realizar o sonho de ser escritor porque a divisão das tarefas domésticas é injusta para ele, quando sabemos que por séculos, quase não houve mulheres escritoras justamente por essa razão.

O personagem mais fascinante talvez seja a criança. Inicialmente, embora apresentada como testemunha, ela é a vítima, afinal, perdeu o pai. Enquanto vítima, é completamente desprezada. Quando diz querer acompanhar o julgamento para saber o que aconteceu, a juíza responde que o objetivo do processo não é mantê-la informada. De fato, a verdade é que o processo penal não se preocupa com a vítima, mas apenas com a sanha punitiva dos outros. Aliás, caso se preocupasse com a criança, o promotor do caso não estaria se esforçando tanto para deixá-la, literalmente, sem pai nem mãe. Amparar a vítima não é realmente relevante para quem quer punir.

No decorrer da história, o menino deixa de se comportar como vítima e vai assumindo o papel de juiz. Todos os detalhes têm função. Não é à toa que o personagem é cego como a justiça deveria ser. Ele é o protótipo do juiz ideal. Chora a dor da vítima, mas não deixa de amar a ré. Mantém perfeita equidistância entre os dois. Nunca opta por um ou outro. Contudo, sabe que não há como voltar ao passado para desfazer a morte e que uma eventual injustiça contra a sua mãe não resolveria o problema.

Tentando chegar ao seu julgamento, não consegue ter certeza, mas percebe que precisa chegar a uma decisão. Fica claro que decidirá pela inocência da mãe, afinal a dúvida deve beneficiar o réu. Quando não tem certeza da condenação, o juiz deve absolver. Mas, isso não assegura que a juíza chegará à mesma conclusão. Eu diria que é até mais comum que mesmo sem certeza, juízes desprezem o que não foi esclarecido e decidam contra o réu. O filme explica a razão: “é muito mais cativante a história de uma escritora que mata o marido do que a de um professor que se suicida”. Nós queremos culpar alguém. Nós queremos odiar. Nós nos sentimos superiores ao apontar alguém como vil.

Agora direi a sentença. Se não quiser saber, pare aqui.

O filme não nos revela o que aconteceu de fato, afinal, como toda reconstrução histórica, nenhum julgamento consegue chegar à “verdade”. Todos são permeados de versões, interpretações e valores. No fim, a escritora é absolvida também pela justiça, mas ao sair para celebrar, acaba aos prantos descobrindo mais uma dura face do processo penal: “Esperava sentir alívio, mas não. Quando a gente perde, é uma derrota, somos punidos. Quando ganhamos, esperamos algum tipo de recompensa, mas simplesmente acaba.” O processo em si já é uma pena. Independentemente do resultado, nada melhora para o réu e nem para as vítimas. As sentenças criminais não são nada além de uma anatomia da dor.