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Publicado em 15 de dezembro de 2024 às 02:00
Dentro de algumas semanas, teremos o resultado do Enem, virá a inscrição no Sisu e milhares de jovens brasileiros precisarão definir se irão se candidatar a uma vaga na universidade pelas cotas ou se vão optar pela ampla concorrência. Para os que optarem pelas cotas para pretos e pardos, será necessário passar pela avaliação de algum comitê de heteroidentificação. A experiência tem mostrado que nem todos os que se consideram pardos são assim entendidos pelos membros dos comitês e, nesses casos, têm suas matrículas negadas. Uma situação que gera desgaste, conflitos, frustrações e tem ido parar nos jornais e tribunais.
Nos anos 1970, quando nasci, apesar do muito que já se havia lutado no Brasil e no mundo para a superação do racismo, estávamos bem mais distantes de reconhecer e aceitar o que, em nós, é negro. Sendo uma criança parda, cresci percebendo como a maioria das pessoas enfatizava a sua herança branca (ou indígena) e disfarçava a negra. Via isso na escola, entre amigos, vizinhos, na TV, nos filmes, em toda parte. Os cabelos eram frequentemente alisados, inclusive por alguns homens. O mais longínquo parentesco com pessoas brancas sempre era motivo de orgulho. Autodefinir-se como “moreno”, naquela época, frequentemente significava: não sou branco, mas também nada tenho a ver com os pretos. Como se a “morenice” tivesse brotado do nada.
No Brasil do século XXI, após tantas lutas, temos avanços. Vejo por todos os lados cabelos crespos, cacheados e volumosos. Nas universidades onde estudei e trabalhei nos últimos anos, encontrei pessoas pardas e pretas, com os mais variados tons de pele, dos mais claros aos mais escuros, que se sabem belas, fortes, inteligentes, poderosas, capazes. Ainda que haja muito a fazer, é preciso reconhecer que percorremos um longo caminho para chegar até aqui. Muita gente enfrentou o racismo e contribuiu para que pudéssemos reconhecer que beleza, inteligência, sabedoria e conhecimentos não são exclusividade dos brancos. Políticas públicas que buscam valorizar as nossas heranças africanas e indígenas, assim como ampliar o acesso de afrodescendentes às universidades públicas, também vêm exercendo papel fundamental. Hoje, personagens e episódios relevantes da cultura afro-brasileira, assim como tradições de povos africanos que vieram para o Brasil estão em livros didáticos do ensino fundamental e médio.
E, assim, cada vez mais pessoas têm se reconhecido como pardas. Isto é, como integrantes de famílias com pessoas de diferentes cores/raças: pretos e brancos, pretos e indígenas, brancos e indígenas (o que invisibiliza mais os indígenas, tema para outra conversa) ou todos misturados. Cada vez mais brasileiros têm tido a coragem de olhar com honestidade para si mesmos, para o seu fenótipo, aceitando quem são e fortalecendo a própria autoestima.
Tudo parece avanço, melhoria, algo a se comemorar. Mas há um elemento que gera desafios nesse cenário: escolher quem são os pardos elegíveis para as ações afirmativas. Já que, no Brasil, o racismo é vivido em função da nossa aparência, as cotas não levam em conta o parentesco e só analisam o fenótipo do candidato. Assim, as cotas são para todos os que se entendem como pardos ou só para alguns? Pardos claros podem utilizar as cotas? Ou elas são apenas para pardos de pele escura? E como ficam as diferenças regionais, já que uma pessoa percebida como branca em um estado/região pode ser percebida como parda/negra em outro?
No modelo adotado pelo IBGE, o grupo dos negros é a soma dos brasileiros pardos e pretos. O aumento do número de brasileiros que se reconhecem como pardos foi fundamental para justificar as atuais políticas de cotas. Mas se as cotas raciais buscam apoiar principalmente as pessoas mais atingidas pelo racismo, deduz-se que nem todos os que se reconhecem como pardos teriam direito a elas. O problema é que, como o tema é complexo, frequentemente os editais que utilizam cotas não são claros sobre quais os critérios para definir quem tem direito a elas. Dizem apenas e vagamente que o fenótipo deve ser compatível com a autodeclaração como pessoa preta ou parda. Mas qual seria esse tal “fenótipo de pardo”? Silêncio.
Para lidar com fraudes no ingresso por cotas, as universidades criaram comitês de heteroidentificação que avaliam se o candidato autodeclarado preto ou pardo efetivamente teria direito à vaga para a qual foi selecionado por meio da cota. As cotas têm desempenhado papel de grande relevância na ampliação do acesso ao ensino superior público a parcelas da população anteriormente excluídas. Assim como os comitês de heteroidentificação têm barrado casos evidentes de fraude ao sistema de cotas que ocorriam impunemente.
Ao mesmo tempo, nota-se, pelas notícias amplamente divulgadas nos últimos anos, que várias pessoas pardas claras têm sido barradas nos comitês de heteroidentificação. Inúmeras polêmicas e judicializações têm ocorrido. O mais preocupante, beirando um retrocesso, é o avanço da perspectiva de alguns defensores das cotas de que os pardos claros são brancos. Ou de que estão se declarando como pardos somente para usufruir das cotas. Trata-se de uma simplificação de algo muito maior, que, como tentei demonstrar, levou décadas para se construir.
Quando falamos em identidade, duas dimensões são convocadas ao debate: a autoidentificação e a heteroidentificação. Ou seja, como eu me vejo e como os outros me vêem. Ambas são relevantes e se combinam na construção e reconstrução dessa noção tão importante: quem sou eu. Por isso é muito delicado quando a heteroidentificação entra em choque com a autoidentificação. Por mais que use malabarismos discursivos para negar o óbvio, quando um comitê de heteroidentificação recusa um candidato, o que está sendo dito a um jovem de 18 anos é: não te reconhecemos como pardo. Um jovem que, por inúmeros motivos, especialmente se vive em estados do sul e sudeste, sabe muito bem que também não é visto como um branco.
Em um país racista como o Brasil, quando uma pessoa assume que tem herança negra, ela fez uma escolha corajosa e política. A luta antirracista ganhou um aliado. Assim, ao invés de defender que os pardos claros se identifiquem como brancos (que não são), seria mais adequado que os responsáveis pela aplicação das políticas públicas pudessem avançar na definição de quem é o pardo elegível para as cotas. E quem não é. O modelo atual dos editais, com os seus silenciamentos e implícitos, está exigindo demais de pessoas jovens e famílias pouco escolarizadas, isto é, um sofisticado letramento racial.
Aos poucos, ainda lacônicas, algumas universidades começam a dar esse passo e indicam que os candidatos elegíveis são os “lidos socialmente como negros”, com “traços fenotípicos que o caracterizem como negro”. Assim, elas estão agindo pedagogicamente, dando mais elementos para que esse jovem pardo possa avaliar se aquela cota, de fato, é para ele. Pois as cotas, claramente, não são para todos os pardos e precisamos assumir isso. É nessa direção que poderemos preservar os dois avanços que conquistamos nos últimos anos: a política de cotas e o aumento na autoidentificação dos brasileiros como pretos e pardos.
Agnes Mariano é Professora do Departamento de Jornalismo do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)