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O fascínio em vermelho e preto

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 2 de dezembro de 2019 às 05:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Nas últimas semanas, meus pensamentos vagavam sobre os mais variados assuntos para, em seguida, voltarem obsessivamente ao ponto inicial. Lia, trabalhava, assistia filmes, mas um sopro de angústia não me deixava esquecer: meu time do coração estava na final da Libertadores. O time que em outros tempos já foi de Junior, Leandro, Adílio, Zizinho, Romário, Petkovic, Leônidas, Evaristo e do deus maior: Zico. E que passou a ser o time de Diego Alves, Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Marí, Filipe Luis, William Arão, Gérson, Éverton Ribeiro, De Arrascaeta, Bruno Henrique, Gabriel e do mister Jorge Jesus. Como uma força divina ou diabólica, o Flamengo demoliu sucessivos adversários e inoculou felicidade em 40 milhões de pessoas no país inteiro.

Futebol é uma compulsão meio tola, dirão alguns, ou um desperdício desnecessário de energia, na opinião de outros. Talvez não entendam o fascínio de algo muito maior do que apenas uma modalidade esportiva. Aqui estamos no território da mitologia, de uma crença da qual nos tornamos devotos desde a infância. Quase sempre motivados por nossos pais, que nos dão camisas com as cores que passamos a amar, nos ensinam os nomes de quem devemos reverenciar e nos mostram a plasticidade de um drible, a precisão de um passe, o delírio de um gol.

Passados 38 anos, eu ainda conservo a chama derradeira do garoto introvertido que viu seu time ser campeão da Libertadores, derrotando o Cobreloa com dois gols de Zico. No último dia 23, esse garoto voltou a aparecer, e confesso que por um momento ele chorou comigo. Porque não tinha mais meu pai ao meu lado, como tive em 1981. E porque tinha agora minha filha, que também assistia ansiosa à última batalha, vencida nos últimos minutos contra o River Plate, com dois gols heróicos de um novo ídolo, que atende pela alcunha de Gabigol. Voltamos a ser campeões da América. Voltamos ao topo.

Uma partida decisiva envolve uma diversidade quase inesgotável de sentimentos. Passamos da tensão à apreensão. Da apreensão ao desespero. Do desespero à esperança. Da esperança ao êxtase. Somos vítimas de uma descarga emocional sem paralelo. Não por acaso, alguns torcedores não resistiram ao segundo gol do Flamengo e morreram do coração. Eu fiquei rouco, gritei como um bárbaro, pulei como um cretino. O arrebatamento rompeu os diques que represavam o desatino e se manifestou em lágrimas, beijos, abraços e palavrões, como se acabasse uma guerra ou caísse um ditador.

Futebol é memória afetiva. Dos álbuns de figurinhas, das tampinhas de refrigerante com fotos de craques da seleção, dos jogos inesquecíveis, do abraço nas vitórias e do consolo nas derrotas. Mas é também um traço cultural do nosso povo. No dia seguinte ao título da Libertadores, o centro do Rio foi tomado por um tsunami rubro-negro. Parecia Carnaval ou comício das Diretas, mas eram apenas pessoas simples, pobres, aguerridas, formando uma massa embevecida a louvar seus ídolos. A festa na favela tomou a cidade, o estado, o país. Isso é futebol. Isso é Flamengo.