Breves reflexões sobre o exílio

Imagine a dor de não poder regressar ao próprio país, ao próprio idioma, à própria história que nos forjou?

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  • Paulo Sales

Publicado em 23 de junho de 2024 às 05:00

Outro dia, saí com velhos amigos de adolescência de quem gosto muito. Papo agradável e enriquecedor numa noite brumosa de outono, de frente para o mar do Rio Vermelho. Um deles, que mora na Itália há 30 anos, nos revelou que pretende voltar para o Brasil em definitivo. Ele tem a vida estabelecida por lá: mora numa bela região rural da Úmbria, é casado, tem uma filha e um trabalho interessante e criativo. Mas, aos 51 anos, sente necessidade de fazer a viagem de retorno à semente, mesmo sabendo que encontrará uma Salvador bem diferente daquela em que viveu. Provavelmente se tornará um apátrida e sabe disso. Não será nem italiano nem brasileiro.

Dos afrescos de Michelangelo aos filmes de Pasolini, meu amigo teve ao seu dispor o melhor de um dos berços da civilização ocidental. Ele mesmo confessou que foram o idioma e a cultura italiana que o formaram intelectualmente. Apesar disso (ou talvez por isso), desenvolveu um pessimismo renitente e observa com ceticismo os rumos da geopolítica, sobretudo a ascensão da extrema-direita na Europa e nos Estados Unidos. Junto dele, sou quase uma Poliana, embora nem sempre veja o mundo pelo copo meio cheio. É que não sou tão fatalista e penso que poderemos tanto enveredar por uma nova idade das trevas como testemunhar um novo Renascimento.

Bem ou mal, os tempos atuais permitem que o meu amigo tenha a seu favor o livre-arbítrio. Assim como se autoexilou no início dos anos 1990, poderá regressar por vontade própria, como já regressou outras vezes para visitar pessoas queridas e matar a saudade de um acarajé. Não sofrerá a dor do exílio forçado, e isso faz uma enorme diferença. Afinal, o mundo de hoje é bem diferente daquele que despontou no início do século passado, por mais que guardem entre si incômodas semelhanças. Antes comuns na Europa, as migrações em massa hoje estão localizadas na periferia do mundo, quase invisíveis aos nossos olhos – a não ser quando desembocam em trágicos naufrágios na costa europeia.

Penso em Vladimir Nabokov. Estou já nas páginas finais de Fala, Memória, sua pungente obra memorialística. É comovente acompanhar seus passos forçados no exterior, após ser expulso do próprio mundo logo após a Revolução Russa, em 1917. Tinha 18 anos. Nascido em uma família rica e aristocrática, mas progressista, Nabokov perambulou por países da Europa até se estabelecer em definitivo na América. Naquela era dos extremos, a História com H maiúsculo promoveu um expurgo que levou a reboque não só ele, mas milhões de pessoas. Ou, para usar suas palavras, “aquela gente quase impalpável que imitava em cidades estrangeiras uma civilização morta, as remotas, quase lendárias, quase sumérias miragens de São Petersburgo e Moscou, 1900-1916”.

Em outro trecho, Nabokov se refere à matéria-prima que engendrou o seu nascimento como artista: “Nem no meio ambiente, nem na hereditariedade consigo encontrar o instrumento exato que me deu forma, o rolo anônimo que gravou em minha vida certa marca d’água intrincada, cujo desenho único se torna visível quando a luz da arte brilha através do papel almaço da vida”. Essa definição também poderia ser aplicada a sua trajetória de expatriado. Morto em 1977, ele jamais voltou ao seu país. Nunca mais São Petersburgo, nunca mais a casa de campo em Vyra, nunca mais o amor adolescente por Tamara. Impossível dissociar o artista que ele se tornou do tempo em que viveu.

Como Nabokov, Stefan Zweig também tornou-se um expatriado. Mas, ao contrário do russo, o austríaco se viu incapaz de prosseguir num período em que o mundo civilizado parecia prestes a se dissolver. Quando cometeu suicídio com a esposa em Petrópolis, no ano de 1941, o nazismo parecia invencível, e ele não quis pagar para ver. Na carta de despedida, encontrada ao lado dos corpos, estava escrito: “Saúdo todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes”.

É certo que o passado não volta. Mas hoje, eu e meu amigo italiano podemos ao menos retornar fisicamente aos hospitais onde nascemos, às casas onde passamos a infância, aos colégios onde aprendemos e desaprendemos tanto. Eles são testemunhas de que estivemos por lá um dia, mesmo que quase não consigamos reconhecê-los. Agora imagine a dor de não poder regressar ao próprio país, ao próprio idioma, à própria história que nos forjou? O exílio é sempre doloroso, mesmo quando voluntário. Mas o desterro absoluto, do qual padeceram Zweig e Nabokov, é uma forma lenta e atroz de aniquilamento.

Aviso aos raros leitores: o cronista sai de férias por algumas semanas e retorna de um brevíssimo exílio na segunda quinzena de julho