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Da Redação
Publicado em 29 de março de 2023 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Quem é preto(a), sabe: é comum ser o único(a) ou a minoria no local quando estamos em volta do vinho. E não digo apenas como consumidores: enquanto nossa cor é predominante entre os contratados do campo, somos raros entre os trabalhadores em posição de destaque desta indústria tão mundialmente reconhecida como branca e elitista.
Não vemos muitos de nossos iguais em feiras, degustações e concursos. No Brasil, inclusive, há apenas um enólogo retinto com chefe de enologia em uma vinícola: Márcio Dal’Osto, da XV de Novembro, localizada em São Paulo. Em Salvador ainda contamos nos dedos os profissionais de sommellerie e vendas com a devida visibilidade no mercado.
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Mas apesar de tudo, pessoas pretas bebem vinho. Elas também empreendem nesse meio e se tornam referência não apenas pelo belo trabalho realizado, mas por proporcionar representatividade e pertencimento. Conheça, a seguir, quatro personagens dessa brigada que tem colocado mais cor no mercado soteropolitano.
Patrícia Penhasommelière-executiva do Manga & distribuidora Família Kogan Wines
Sou soteropolitana e meu primeiro contato didático com o vinho foi no Bacharelado em Turismo e Hotelaria na UNEB. Terminei o curso superior em 1994, trabalhei no Sofitel por 4 anos e depois ingressei no restaurante Maní, em São Paulo. Lá eu tive as grandes experiências e estabeleci os contatos mais importantes para me profissionalizar na área. Minha trajetória no segmento não surgiu de um insight; foi após identificar habilidades e sensibilidade para a bebida através das degustações e outras vivências com clientes, críticos e jornalistas que frequentavam o lugar. Quando me vi apaixonada por vinhos, me transformei em uma devoradora de conhecimentos, tanto enquanto autodidata como recorrendo a cursos em instituições como a SBAV (Associação Brasileira dos Amigos do Vinho), ABS (Associação Brasileira de Sommeliers) e WSET (Wine and Spirits Education Trust). Minhas viagens de férias eram majoritariamente para regiões vitivinícolas, por exemplo; a fim de reforçar todas as práticas possíveis. Trabalhei em seguida em lugares igualmente bons, como Chef Vivi e La Cocotte, até que voltei ao mercado de Salvador. Um retorno com muitos desafios, dentro de um mercado dominado por homens brancos e atípico para a minha atuação como sommelière negra. Mas, certamente, desistir nunca foi uma possibilidade. Seria muito injusto comigo, depois de tantos anos, ceder a um capricho da branquitude e desistir de mim, do meu sonho. Todos esses atravessamentos foram definitivos para iniciar um trabalho mais autônomo e me ver nesse lugar de protagonista da minha própria história. Hoje, tenho colhido frutos bonitos e grandes e importantes parcerias para trabalhos contínuos e consistentes. Uma vez que você se reconhece como potência, nada mais te segura, né? Carol Sousa proprietária do Terroir Bar de Vinhos
Sou adoradora do vinho há muitos anos, mas foi somente em 2018 que fiz o curso de Sommelière. Quando saía com meus colegas para fazer degustações e ganhar experiência nas adegas de Salvador, incomodava-me encontrar sempre as mesmas pessoas. Pessoas brancas e de poder aquisitivo alto correspondem à grande parte dos consumidores do vinho em Salvador. Mas eu sabia que uma outra parte da população também gostava de vinho, mas não se via entrando nesses lugares. Sim, pessoas pretas, jovens em ascensão e, na maioria, formada de mulheres. Junto com Juliana, uma amiga de curso, decidimos abrir o nosso próprio bar de vinhos; que hoje, toco sozinha. Daí nasceu o Terroir: um negócio com foco em rótulos de mínima intervenção, orgânicos, naturais e priorizando vinícolas sustentáveis. Criamos um espaço agregador e acolhedor, onde pessoas de todas as idades, pessoas pretas, mulheres e o público LGBTQIA+ pudessem viver novas experiências com a bebida, e também se sentirem à vontade para beber sem firulas, com preços justos. Hoje, mais de 80% do meu público é formado de mulheres, pessoas pretas e na faixa etária de 27 a 65 anos. Eu como mulher preta empreendedora, que sabe das dificuldades que pessoas como nós encontramos em lugares hostis à nossa presença, me sinto realizada de saber que o Terroir se tornou esse lugar. A cidade com mais negros fora da África precisa não só de mais espaços assim, como também de mais pessoas pretas trabalhando nessa área do mundo dos vinhos. Agradeço por ser também, mais uma referência de que isso é possível, uma mulher preta trabalhando com vinho. Representatividade importa sim, e muito! Tauan Almeida proprietário da Rasta Wines
Sou natural de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo. Cresci em um orfanato de uma igreja evangélica e sempre tive uma vida muito difícil em muitos aspectos: já não tive onde morar e já passei muita fome. Mas sempre tentei ser uma pessoa correta e acho que isso me trouxe até aqui. Moro em Salvador há 13 anos, sou pai de 2 filhos e sou muito grato a essa cidade, pois ela me deu e me ensinou muita coisa. E inclusive me trouxe a Rasta Wines. A empresa surgiu, ao contrário de tudo o que contei até agora, de maneira muito despretensiosa. Eu comprava vinho com um grande amigo chamado Júlio Costa, e ele, certa feita, sugeriu que eu passasse a vender vinhos também. Hesitei um pouco, mas decidi apostar. Comprei 40 garrafas e vendi todas em uma noite! Dessas primeiras 40 garrafas eu não parei mais: na mesma semana já criei meu CNPJ e a página no Instagram, que acabou elevando a coisa a um outro patamar. A Rasta Wines vai fazer 2 anos em junho, e já tenho uma base de clientes consolidada. Inclusive tenho muito orgulho de ter uma clientela preta, principalmente de mulheres pretas, que abraçaram meu trabalho e o fortalecem demais de muitas maneiras. De fato, o mundo dos vinhos é extremamente branco e muito elitista, mas o que eu tento fazer com meu trabalho é mostrar que pessoas pretas também bebem, gostam e entendem de vinho. Pro futuro espero ampliar ainda mais meu plano de assinaturas, ter um bar de vinhos e, também, fazer um curso de Sommelier. Samuel Costa sommelier do Origem
“Nasci, cresci e até hoje moro na mesma rua do bairro Ilha Amarela, no subúrbio ferroviário. Sou de uma família bem humilde, mas graças à minha mãe e meus tios, nunca passamos fome. Comecei a trabalhar com 7 anos e fiz de tudo nessa minha vida. Quando tinha 23 anos, fiz um curso de garçom para ter uma renda extra e comecei a trabalhar no Lafayette. O maître Jucy Dantas foi muito importante, falava que a gente precisava ter um diferencial para crescer. Então, nos dias de folga ele nos convidava a beber vinhos em sua casa, apresentando os rótulos e fazendo harmonizações. Foi aí que começou a minha história no vinho. Na época eu nem gostava de vinho seco! Após um tempo fiz um curso pela ABS, só fui atuar na área quando conheci Fabrício Lemos, que na época estava no Al Mare. Com ele conheci a alta gastronomia! De lá pra cá são dez anos trabalhando juntos, sendo seis destes no Origem. Infelizmente ser um homem negro que trabalha como sommelier em uma casa de destaque — um dos 100 melhores restaurantes da América Latina — ainda assusta as pessoas. Já ouvi que não ‘pareço’ sommelier, perguntam se sou o segurança. Nunca me deixei abater por isso, cada um dá o que tem no coração. Já tive oportunidade de viajar pelo Brasil e pelo mundo e lá fora não senti esse nível de preconceito que senti aqui. Até mesmo quando percebo que sou o único negro estudando; como no ano passado, quando fiz alguns cursos na França. As pessoas olhavam muito quando eu perguntava algo mesmo eu não falando bem francês, mas eu não deixava que isso me impedisse de aprender. Hoje percebo que o negro precisa se esforçar mais que os outros e isso, junto com o alto investimento para se educar em vinhos, tem impedido mais pessoas se atuarem no segmento”
Este conteúdo especial em homenagem ao Aniversário de Salvador integra o projeto Salvador de Todas as Cores, realizado pelo Jornal Correio, com patrocínio da Suzano, Wilson Sons, apoio institucional da Prefeitura de Salvador e apoio da Universidade Salvador - Unifacs.