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Os sonhos, as telas e a encruzilhada da universidade

Os sonhos, que só acontecem quando se tem bom sono, são impulsionadores da criatividade e de um mergulho profundo nas ideias, sensações, inspirações

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 17 de fevereiro de 2025 às 05:00

Li, recentemente, uma matéria do jornal Estadão com Sidarta Ribeiro. O neurocientista mais uma vez insiste num dos grandes problemas atuais, que é a falta de um bom sono e dos sonhos, que são mecanismos sofisticados de contato entre consciente e inconsciente.

Os sonhos, que só acontecem quando se tem bom sono, são impulsionadores da criatividade e de um mergulho profundo nas ideias, sensações, inspirações. Isso gera um melhor desempenho intelectual e da memória, dentre outras questões fundamentais para um bom funcionamento do cérebro.

Há, no entanto, um complicador que enfia ainda mais nossa modernidade num poço que parece sem fundo: as telas.

Na matéria, segundo as ONGs We are social e Meltwater, o Brasil é o segundo país do mundo a passar mais tempo em frente a uma tela, seja de celular ou computador. E esses aparelhos geram estímulos externos e imagens prontas que nos impedem de nos voltarmos ao nosso mundo interior. Por conseguinte, as pessoas se tornarão “extremamente literais porque o espaço da metáfora, da alegoria, da poesia, da filosofia, está sendo drasticamente reduzido”, projeta o neurocientista.

Esse trecho acima foi bastante compartilhado nas redes sociais - sim, elas podem ser ferramentas de acesso, apenas acesso, a conhecimentos e pensamentos mais complexos -, e graças a isso busquei a matéria do jornal.

Acontece que, para piorar, toda essa degenerescência intelectual se agrava com o que se segue, na fala de Sidarta: “Certamente também serão não leitores. Meus alunos da graduação - jovens de 20, 21 anos, já da geração do smartphone - têm muita dificuldade de concentração. Não conseguem ler uma página inteira. E estudos feitos no meu laboratório mostram que, na nossa sociedade, a leitura é fundamental para desenvolvermos um discurso mais complexo. Quem lê mal e muito devagar não tem prazer na leitura, não embarca na imaginação.”

Já virou lugar comum, nas conversas entre professores, a queixa sobre o nível de desinteresse e despreparo intelectual da maioria dos/as estudantes. Na universidade, isso se agrava porque o ambiente acadêmico é complexo e penso que jamais devamos desconsiderar quaisquer que sejam suas tão diversificadas questões.

A universidade tem se tornado, cada vez mais, uma objetiva possibilidade de acesso a um diploma, e mais justa inserção no mercado de trabalho, para diversos e distintos estratos sociais do país. E isso é um grande avanço no sentido de um país mais plural e menos desigual.

Contudo, a universidade é, em sua essência, um lugar de produção crítica de conhecimento, pesquisa aprofundada, e aprendizado de técnicas sofisticadas dentro dos aspectos que compreendem cada área e cada curso.

Para tal, como insiste tão bem Sidarta, é preciso que as pessoas durmam bem, sonhem, e a cada nova ação de assistência social, das bolsas ao restaurante universitário, das bibliotecas às residências universitárias, seguem-se tentativas de oferecer, ao alunado, melhores condições de vida; porque não dá para se pensar na teoria contemporânea do romance, ou numa neurocirurgia, com fome, sem moradia, segurança e locomoção adequadas.

Mas os problemas das gerações mais recentes vão muito além de questões sociais. Os casos de ansiedade, depressão, e outros distúrbios psíquicos com amplo espectro de nuances, terminologias e diagnósticos, têm transitado por todas as classes, de uma maneira como nunca vista antes.

Há quem credite o crescente número de pessoas com problemas mentais a um avanço da medicina em poder diagnosticar mais precisamente aspectos que eram, antes, encarados como meros comportamentos sociais atípicos, e personalidades mais fortes, mais tímidas, mais introspectivas, mais eufóricas, etc.

No entanto, o dia-a-dia cada vez mais desgastante, as cobranças e pressões psicossociais, e o avanço das tecnologias têm gerado novos e mais preocupantes problemas, como os que Sidarta aponta.

E surge uma grande questão: como a universidade deve lidar com isso?

Obviamente, não será de maneira violentamente punitiva, nem com assédios morais, e nem com reprovações em massa que vai se resolver qualquer problema. Os fascistas seguem acreditando nisso, e os progressistas devem sempre reagir a qualquer tipo de violência e opressão; mesmo que simbólica.

Mas penso que também não será com a leniência, comiseração, relaxamento intelectual que pode-se alcançar algum patamar aceitável que condiga com o ambiente acadêmico.

Na minha área, das artes, o discurso mais complexo e a imaginação andam de mãos dadas. É fundamental “o espaço da metáfora, da alegoria, da poesia, da filosofia.” Sem a leitura, como apontam os estudos de Sidarta, não se atinge tudo isso. E deve ser uma leitura constante. A todo momento, deparo-me com minhas ignorâncias e equívocos ao ler algum livro teórico, e com minha pequenez estética ao mergulhar nas grandes obras literárias da humanidade. Em vez de me sentir oprimido, me sinto impelido a saber mais, a ampliar meus horizontes e, assim, crescer como professor e artista. Se em estudantes esses sentimentos não são despertados, temos um gigante, imenso, gravíssimo problema.

Soma-se ao desinteresse e despreparo intelectual uma certa arrogância da ignorância, em muitos casos, que torna tudo ainda mais difícil. Não é somente convencer estudantes a lerem, se aprofundarem, descobrirem e acessarem o vasto, incrível e iluminado reino da leitura.

Hoje em dia, como já dizia Raul, temos estudantes que já têm uma velha(?) opinião formada sobre tudo. Repetem clichês e preconceitos sobre autores, teorias e estéticas, opinando sob a mera perspectiva do achismo, empunhando um ínfimo e irrisório repertório de referências que parecem lhes bastar e serem o horizonte a se mirar.

Em vez do exercício crítico de leitura da realidade, retira-se os filtros da complexidade e da sofisticação. A universidade, em vez de espaço diferenciado de acesso a conhecimentos e técnicas, torna-se um simulacro da realidade cotidiana; perdendo, assim, sua função primeva.

Nós, professores universitários, temos um incomensurável desafio pela frente: como seduzir, acessar estudantes? Mais ainda, como fazê-los querer ser seduzidos e acessados? Entretanto, essa não é uma via de mão única, e deve haver necessidade de movimento do outro lado, também (e meus alunos excelentes são exceções que confirmam a regra).

Mas sigo firme pensando que não será indicando menos livros, mediocrizando a discussão, empobrecendo as referências, e reduzindo a transmissão e o exercício das técnicas da profissão que vamos resolver esse nó.

Seria (está sendo?) uma imensa bola de neve. Formaremos cada vez mais graduados/as com menos embasamento, mestres com menos referência, e doutores/as com menos conhecimento. Até que chegará o momento em que a universidade será apenas um amontoado de sensos comuns, sem bibliografia, sem técnicas mais sofisticadas e complexas, sem exercício crítico e horizonte teórico.

E aí não vai ter mais sono, melhores sonhos e nem menos telas que resolvam o abismo intelectual em que estaremos afundados.