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Publicado em 16 de novembro de 2024 às 07:04
As relações entre a Bahia e as ilhas de São Tomé e Príncipe, na África, são históricas. O arquipélago, desabitado até 1470, foi ocupado pelos portugueses, servindo de entreposto para o comércio no Atlântico. A partir de 1676, por meio da bula Inter Pastoralis Officii Curas, do Papa Inocêncio XI, a diocese de São Tomé e Príncipe tornou-se sufragânea do Arcebispado da Bahia e o cotidiano dos seus habitantes passou a ser orientado pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707).
Além disso, personagens notáveis transitaram entre os dois lugares. A partir de 1757, o engenheiro militar soteropolitano José Antonio Caldas (1725-1782), que desenhou fortificações da Bahia, também trabalhou no arquipélago africano, projetando edificações que incluíam a Sé local. No século XXI, nova aproximação reforça a ligação entre a Bahia e a Ilha de São Tomé, mediada pela aquisição de uma preciosa coleção de livros, periódicos, manuscritos e fotografias de suma raridade.
O conjunto foi adquirido, recentemente, pelo Instituto Flávia Abubakir, sediado em Salvador, por diligência do casal Frank e Flávia Abubakir. A instituição baiana tem ampliado sua coleção, que contempla livros preciosos de África, contando um exemplar do Yoreh De’ah (1516), de Jacob Ben Asher, reconhecido como o primeiro livro impresso em caracteres tipográficos no continente africano, na cidade de Fez. Foi produzido nos prelos de Samuel Nedivot, que havia aprendido a arte da impressão com Eliezer Toledano, em Lisboa, mas que por questões religiosas se refugiou no Marrocos, onde montou o primeiro prelo africano e, com seu filho Isaac, imprimiu cerca de uma dúzia de títulos em hebraico.
Destaca-se na coleção livros que contemplam a multiplicidade das línguas africanas, salvaguardando os seus primeiros registros linguísticos e oferecendo aos pesquisadores acesso a obras raríssimas. Há um valioso exemplar da Doutrina Christaã (1624), composta pelo jesuíta Marcos Jorge (1524-1571), “traduzida na lingoa do Reyno de Congo”. Esta edição possui o texto original de um catecismo, com a tradução do mesmo para quicongo, língua africana que pertence ao grupo bantu, falada pelo povo congo nas províncias de Cabinda, Uíge e Zaire, no norte de Angola, no Congo Central, província da República Democrática do Congo e nas fronteiras da República do Congo. A língua quicongo tem influência na cultura brasileira, especialmente nas religiões de matriz africana de linhagem Congo-Angola. Esse livro é primeira experiência de literalização, em signos gráficos latinos, de uma língua africana. Em suma, trata-se do primeiro livro do mundo impresso em uma língua africana.
O Instituto tem por objetivo colocar à disposição dos pesquisadores, por meio digital, livros e folhetos impressos nos parques tipográficos ultramarinos de origem portuguesa, além de manuscritos únicos e valiosos. Grande parte desses itens foram produzidos em pequenas quantidades, logo se tonando raros e sendo a localização dos seus exemplares um desafio mesmo para pesquisadores experientes. Disponibilizar essas obras digitalmente possibilita democratizar cinco séculos de informação.
Em junho, o Instituto ampliou seu acervo de livros impressos no ultramar. Adquiriu uma coleção iniciada em São Tomé e Príncipe, ainda no século XIX, por D. Francisco de Asis Diego José Maria del Rosário Mantero y Velarde (Cádiz, Espanha, 4/10/1853 – Lisboa, 23/4/1928) próspero fazendeiro daquelas ilhas, que viveu em Angola, Moçambique, Timor e foi sócio fundador da Sociedade de Geografia em Lisboa. Após seu falecimento, outros itens foram adicionados à coleção pelos descendentes
O conjunto soma cerca de 450 volumes, contemplando obras de História, política, linguística, viagens e registros fotográficos. Encontra-se nele um manuscrito inédito sobre a ilha de Cabo Verde, datado de 1822, e alguns dos primeiros folhetos publicados pela Imprensa Nacional de São Tomé. De autoria de Thomé de Brito, há exemplar da Carta ao ill.o e ex. sr. Libanio Northway do Valle, a proposito do seu folheto: «Duas palavras acerca das ilhas de S. Thomé e Principe» (1877). Com 16 páginas, é uma réplica ao chefe de seção na direção das obras públicas de Lisboa, Libanio Northway do Valle, que apontara uma série de problemas nas ilhas africanas.
A joia do conjunto são os 60 volumes in-folio do Boletim Official do Governo da Província de S. Thomé e Príncipe, cujo primeiro número começou a circular em 3 de outubro de 1857. O monumental conjunto, único conhecido, se estende até 1927, registrando sete décadas da vida pública local, bem com as relações daquele território com Portugal e os países vizinhos, sendo importante para a História da África e da imprensa periódica portuguesa no Ultramar.
Além de impressos em São Tomé, no conjunto recém adquirido há livros e folhetos saídos dos prelos de Luanda, Lourenço Marques (Moçambique), Quelimane, da missão católica de Malanje, Benguela, além das cidades asiáticas de Macau e Bombaim. A questão dos trabalhadores de São Tomé entre fins do século XIX e começo do XX aparece bastante no conjunto.
Pesquisadores brasileiros e de outras partes do mundo estão a investigar a História da África, bem como suas relações com o Brasil e Bahia, com maior profundidade. O acervo do Instituto Flávia Abubakir, por meio do seu singular acervo, se coloca estratégico para esse fim.
Pablo A. Iglesias Magalhães é professor na Universidade Federal do Oeste da Bahia. Email: [email protected]