O São João nasceu na Bahia

O milho nem sempre foi o prato principal da festa. Os jornais do século XIX destacavam o caruru e o vatapá, bem antes da canjica ter protagonismo

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  • Nelson Cadena

Publicado em 20 de junho de 2024 às 05:00

O São João nasceu na Bahia em volta de uma fogueira e assim continuou até hoje. Foi a única tradição da festa mantida em mais de quatro séculos de celebrações; outros elementos foram repaginados ao longo da história: simbolismo, gastronomia, música, diversões agregadas. Foi o padre Fernando Cardim quem descreveu as fogueiras e a brincadeira de pular sobre elas, em 1583: “Três festas celebram estes índios com grande alegria, aplauso e gosto particular. A primeira é as fogueiras de S. João, porque suas aldeias ardem em fogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva a roupa, ainda que algumas vezes chamusquem o couro...”

Pular fogueira, pela descrição do jesuíta, era uma forma de divertimento. Nada sabemos da música; se tinha, provavelmente gutural, com o auxílio de instrumentos (chocalhos, tambores e flautas) que não fazem parte hoje da tradição junina recente. E em relação à culinária, o milho era para os tupinambás alimento complementar, a mandioca era o principal, diferente da relevância do grão para as culturas Azteca e Maia.

O milho nada tinha a ver com o São João, que, para os jesuítas, tinha um significado religioso. A celebração se baseou nos povos primitivos, em volta da fogueira milenar, atendendo a uma estratégia de aproximação. Para os indígenas não existia esse santo católico. A nossa influência junina era ibérica, tanto assim que quando a esquadra espanhola de Fradique Toledo botou para correr os holandeses, em 1625, os soldados celebraram a bordo de três navios, substituindo as fogueiras por lampiões.

“Colocaram nesta noite lampiões acesos, tanto nos mastros, nas gáveas, como em todos os pontos, de todas as vergas, o que deu a impressão de muitas estrelas... enfeitaram estes três galeões com bandeiras e bandeirolas”, assim narrou o soldado Johann G. Aldenburgk, no seu diário de bordo. Bandeiras e bandeirolas passaram a fazer parte do cenário na festa, nada similar tinha nas celebrações indígenas, que desconheciam fibras vegetais compatíveis com a ideia de decoração ambiental.

O milho nem sempre foi o prato principal da festa, pelo menos na Bahia. Os jornais do século XIX destacavam o caruru e o vatapá, bem antes da canjica assumir o protagonismo. E bem depois, outras variáveis do milho, o amendoim, a laranja e os licores de frutas que substituíram a gengibirra e a caninha. As freiras do Desterro aperfeiçoaram a produção de licores e nos proporcionaram um prazer mundano, quase pecaminoso – Viva São João – apesar de seu preparo ser divino.

E foi assim que as festas juninas, reinventadas ao gosto nordestino, abandonaram as tradições ibéricas, da contradança europeia, das quadrilhas francesas, dos berradores de rua com seu “Acorda João”, dos figurinos desbotados, e inventamos cores e incorporamos a sanfona, o triângulo e a zabumba. E dançamos o xote e o forró; mantivemos a tradição binária europeia de danças em pares, tanto nas quadrilhas como no forró agarradinho, perna abusada. São João, o santo, ruboriza.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras