O mito do amadorismo puro durante as olimpíadas

Amor à camisa é uma bela figura de linguagem, mas prefiro a tradução desse conceito: amor a si mesmo e desejo de superação

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  • Nelson Cadena

Publicado em 18 de julho de 2024 às 05:00

As olimpíadas modernas nasceram sob o pressuposto do amadorismo puro, um cacoete tão verdadeiro quanto o da imparcialidade da imprensa. Os atletas competiam por amor à camisa, recebiam ramos de oliveiras, como nos jogos helenos da antiguidade, anteriores à era cristã. E como nos jogos da antiguidade, o “amadorismo puro” era recompensado com empregos, isenções fiscais, promoção dentro das forças armadas (expressivo contingente dos atletas era de militares, em especial no atletismo e nas competições de tiro, esgrima, ginástica e luta), com benefícios no soldo do final do mês e em alguns casos, bens materiais, dentre os quais casa própria.

Amor à camisa é uma bela figura de linguagem, eu gosto, mas prefiro a tradução desse conceito: amor a si mesmo, amor-próprio, vaidade, orgulho, desejo de superação. E ainda que o atleta tivesse formação militar, o amor à camisa nada mais seria que um “patriotismo sistematizado”. Acho que inventei uma variável do conceito pior do que o original.

Nas primeiras versões das olimpíadas modernas os vencedores recebiam, além dos ramos de oliveiras e mais tarde medalhas de ouro, presentes de um certo valor. É o caso dos vasos de porcelana de Sèvres distribuídos na Olimpíada de Paris, em 1924. O amadorismo era um mantra e em nome dele não se admitiam atletas profissionais, exceto - tem exceções quando se querem quebrar as regras - para os instrutores de esgrima que eram também competidores. O campeão do Pentatlo e decatlo, Jin Thorpe, em 1912, perdeu as medalhas quando se descobriu que ganhava um salário na sua equipe de beisebol.

O amadorismo puro que sempre foi um ideal, e não uma realidade, foi vantajoso para os países socialistas e comunistas, por décadas. O Estado bancava seus atletas para treinarem em tempo integral, enquanto atletas de outras nações tinham que se virar para ter um emprego e um patrão bonzinho que relativizasse seus horários de treino. Os americanos, espertos, criaram bolsas de estudos nas universidades, facultando aos atletas treinos diários e com uma boa carga horária. Os países fora do Leste Europeu tanto pressionaram o Comitê Olímpico que, na década de 1980, passou a admitir atletas, digamos, patrocinados. Oficialmente em 1984. Nem todas as federações aceitaram a regra, o caso do Boxe e do futebol, este acabou criando um filtro de idade.

Foram quase oito décadas de hipocrisia. De uma ou de outra forma, em especial através do sistema de recompensas, os atletas amadores eram remunerados. Ou pelo Estado ou pelos governos ditos democráticos, Estado do mesmo jeito, no Brasil as estatais. Enquanto prevaleceu o “amadorismo puro”, os organizadores das olimpíadas, e isso foi extensivo a todas as competições de porte no mundo, criaram o sistema de voluntariado. As receitas das olimpíadas, da primeira metade do século XX, não conseguiam cobrir o custo dos recursos humanos envolvidos, a cada certame uma demanda maior de colaboradores.

Um dia, as olimpíadas se tornaram um negócio muito lucrativo. Bilhões de dólares. Nos jogos de Tóquio, somente com patrocínios, fora as polpudas receitas de bilheteria, o COI arrecadou US$ 3,1 bilhões - em torno de R$ 17 bilhões. Mesmo com esse super profissionalismo na geração de receitas e lucros, o voluntariado continua. Como nas origens dos jogos quando não existiam patrocínios. São milhares de jovens que disputam o privilégio de trabalhar numa olimpíada. Cabeça feita pela propaganda. Vi ontem a turma portando cartazes pelas ruas da cidade sede com os dizeres: “Chega de Exploração!”. O despertador tocou. Estava sonhando.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras