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Nelson Cadena
Publicado em 24 de outubro de 2024 às 05:00
Hoje não acordei. Deveria. Fiz isso durante mais de vinte e cinco mil jornadas, perdi a conta. Um dia acordei num berço, outro em colchões macios, acordei deitado em redes, em colchões de palha, catres de hospital, acordei em esteiras, no chão duro e frio, em bancos de praça, acordei na areia; sempre acordei, por que hoje seria diferente? Não sei. Se soubesse, teria acordado. Acordar sempre foi rotina, hábito, no final das contas, respiração nem sempre harmônica. Respirar deve ser a única verdade, assim me parece.
Devo acordar outra hora, daqui a pouco, ou daqui a muito, quiçá em anos, tanto faz. Se daqui a pouco terei um cobertor. Nos bancos de praça meu cobertor era um papelão, cortado ao meio, a outra metade cobrindo o cimento; na rua, embaixo das marquises dos edifícios, o papelão era seda. Deus nos dá o frio conforme o cobertor, lembrei disso. Dormir na rua é necessidade e não dói, acordar no outro dia dói muito, a sensação de abandono é inexplicável. Sempre imaginei que a cara da morte seria como acordar na rua. Um dia saberei, acordado ou não.
Hoje não acordei, então quem escreve este relato? Quem compartilha com os outros aqui no jornal? Um questionamento, talvez um detalhe, algumas de minhas crônicas escrevi dormindo; construía um roteiro, frases e blocos de frases e já acordado só fazia botar no papel, se na máquina de escrever, se no computador, na nuvem. Nunca tive certeza se a crônica sonhada era idêntica à crônica publicada, se não era, parecia, e a fluidez ao digitar era o sinal de que o texto onírico era, de fato, o mesmo. Secretos desígnios da memória.
Se hoje não acordei é porque em algum momento da noite parei de sonhar e se em algum momento do sono profundo não teve mais sono profundo, apenas desapego, este relato não é mais mundano, e se é atemporal e imaterial, talvez seja outra coisa. Não importa. Pelo menos sei que acordar, ou não acordar não faz diferença quando não se tem a certeza de estar acordado. Mas, se não acordei, é estranho porque ouço os acordes de músicas que me tocam e preenchem a alma, talvez agora eu seja apenas alma. Vai saber!
Ouço o som de trombetas, guitarras e violinos, ouço o som de mariachis: “Juran que esa paloma/ No es otra cosa más que su alma/ Que todavía la espera/ A que regrese la desdichada/ Cucurrucucú, paloma/ Cucurrucucú, no llores/ Las piedras jamás, paloma/ Qué van a saber de amores?”. E ouço Júlio Iglesias interpretando “Como noche como sueños/ Son los ojos negros/ De mi amor, Manuela/ Como espiga en primavera/ Como luna llena es mi amor, Manuela”.
Ouço, ainda, Elton John, vejo-o dedilhando o piano: “Oh, e eu posso ver Daniel acenando a Deus/ Deus, parece o Daniel/ Devem ser as nuvens nos meus olhos/ Oh Deus, parece o Daniel”. E não ouço mais nada, porque se daqui a pouco, ou daqui a muito, eu acordar, estarei a dedilhar o teclado, se real ou imaginário, de um roteiro de vida ou morte, as duas faces da mesma moeda que jogada para cima, se der cara valeu, se der coroa, valeu também.
Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras