O cordão umbilical do Carnaval

O profano nunca existiu. Se 'existe' até hoje é por ingerência de um poder eclesiástico e a omissão dos outros poderes

  • Foto do(a) author(a) Nelson Cadena
  • Nelson Cadena

Publicado em 10 de outubro de 2024 às 05:00

Há um elo invisível entre três manifestações coletivas: um cordão umbilical entre o Carnaval, os funerais e as celebrações religiosas de rua. Todos, de um jeito ou de outro, ritos de rua. Não sou antropólogo, etnólogo, sociólogo, nenhuma formação que me facilite a compreensão dessa simbiose. Sou ignorante nesta matéria e em muitas outras. Não tenho autoridade para dissertar sobre o assunto. Me apoio apenas na minha percepção.

Esse cordão umbilical já era evidente no passado, entre as sociedades primitivas, os indígenas entre nós. Ainda hoje, porém, prevalece com outro formato. Não exatamente na Bahia, onde o Carnaval se distanciou faz tempo da simbologia da morte (apesar da invenção da mortalha como figurino, na década de 1970), diferente dos carnavais caribenhos que cultuam ainda no último dia da festa o enterro simbólico de Joselito Carnaval, a representação do personagem que se esbalda na farra e acaba inconsciente, dado como morto, na rua. E desse jeito celebrado.

No Carnaval de New Orleans, o Jazz Funeral que termina com uma dança catártica é uma das tradições culturais mais relevantes. E não há como dissociar a celebração do tradicional Dia dos Mortos dos mexicanos, de um Carnaval de rua alegre e espetaculoso. Esse cordão umbilical entre Carnaval e funeral é a própria simbologia do último dia da festa. A Quarta-Feira de Cinzas, para os católicos, é o dia de lembrar a mortalidade. E, na Bahia antiga, quando existia a procissão de cinzas, na quarta-feira, espetaculosa e teatral, devotos e os foliões do amanhecer se confundiam no préstito.

Na Bahia contemporânea, a Lavagem do Bonfim talvez seja a perfeita simbiose entre Carnaval, procissão e morte. O rito é uma festa carnavalesca, representada através de um cortejo alegre de rua para celebrar o Senhor Morto, o Senhor do Bonfim. Ou seja, Jesus Crucificado. E então inventamos a segunda-feira gorda do Bonfim, que o povo já identificava como abertura do Carnaval. E a mídia, pautada pela igreja, caía no conto da separação dos corpos e simulava a ruptura do cordão umbilical, criando dois entes: sagrado e profano.

O profano nunca existiu. Se “existe” até hoje é por ingerência de um poder eclesiástico e a omissão dos outros poderes. O “profano” sempre foi componente da fé. Nasceu da necessidade de se criar uma infraestrutura de serviços para a demanda de centenas de romeiros, no passado; centenas de milhares de baianos e turistas, no presente. Tem que pernoitar, comer e beber. Tudo bem que não é água benta, a multidão bebe a bendita e, se canta e dança, nada mais é que a reconexão umbilical com nossas raízes.

O Padre Nóbrega, quando descreveu a primeira festa da cidade, Corpus Christi, em 1549, destacou as “danças e invenções” e, no século seguinte, os baianos incorporam à festa mascarados e cucumbis, muitas alegorias e as ditas e benditas “danças e folias”.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras