Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Nelson Cadena
Publicado em 22 de agosto de 2024 às 05:00
“Depois que eu fiz uma porção de canções sobre minha terra, o que resultou, aliás, em grande moda de coisas da Bahia, eu disse para mim mesmo: Caymmi, você precisa fazer uma canção, um samba, enfim, uma música que fale das coisas e das graças do Rio de Janeiro. Precisa, mesmo. De fato, eu tenho a obrigação de fazer um samba para a cidade que me glorificou, a cidade da Nana, do Dorivalzinho, do Danilinho e de muitas coisas que realmente me encantam. Mas, quer saber de uma coisa: até hoje não achei jeito de compor uma linha sequer.”
“Sobre a Bahia se fez centenas de sambas; o assunto é fácil e a fórmula está aí dando sopa: Senhor do Bonfim, Cais Dourado, ‘vou buscar uma baiana para mim’, ‘a morena que eu perdi lá na Bahia’, ‘a sandália na ponta do pé’, ‘a saia rodada’, etc; é só misturar com a velha bossa - samba-moamba e bamba - e pronto, está feito o legume. Sobre o Rio de Janeiro, o negócio, antigamente, era com a pobre da Favela. Não acontecia nada no samba que não fosse passado na favela. A favela ‘que era minha e que era dela’ e que não tinha nada de samba, coitada, não tinha; eu fui lá para ver.”
“Depois foi o Morro. Só dava morro: Morro disso, morro daquilo. Malandro do morro, cabrocha do morro, barracão no morro e tome de morro... (honestamente só se falou ‘batata’ sobre morro, agora nesses últimos carnavais). Afora, esses dois assuntos, o Morro e a Favela, com a sua rima convidativa, o negócio fica mesmo é no ‘meu amor me abandonou’, ‘mulher banal’, ou então se volta para o velho problema do trio amoroso; no samba, aliás, dois amigos que acabam muitíssimo bem e no meio uma pobre mulher que é xingadissima, marretadissima que nem título de bolero ou título de filme mexicano.”
“Agora me diga: eu posso chegar na fábrica de discos e pedir ao homem que me deixe gravar um: ‘Eu sou do morro’ ou um ‘Meu amor, lá da favela’? Posso? Não posso. Mas, eu sou teimoso e saio por aí procurando assunto para meu samba carioca. Bom; um dos meus assuntos prediletos é o mar, reciclável. Aluguei um apartamento no Leblon e fui para lá crente de que estava resolvida a questão de ambiente e que sairia por fim a minha canção carioca. Mas, qual nada, o ambiente inspirador era nenhum. Fiz amigos, isso sim... Morar no Leblon, não é morar. Paga-se aluguel de luxo para viver ao lado de botequins de frequência, daquelas, ou terminais de linha de lotação, e de ônibus, o que aliás, ali é mato.”
“A praia é uma beleza. Em fotografia, então, dá gosto - aquela imensidão de areia, aquelas ondas vidradas, quebrando chuá, chuá, é realmente uma beleza - Mas, o cheiro? E a imundície? E aquela onda marrom, que vem chegando traiçoeiramente, e que vem envenenar as nossas criancinhas? Uma vez por ano, quando nada, aparece uma doença braba... Agora me diga: ‘Eu posso fazer alguma canção sobre algum pedaço da cidade maravilhosa’?” (Crônica de Caymmi publicada no Jornal da Semana, 5 de maio de 1953.)
Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras