A carnavalização das festas populares

Vale lembrar a máxima do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade: 'Nunca fomos catequizados, fizemos foi Carnaval'

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  • Nelson Cadena

Publicado em 26 de julho de 2024 às 05:00

Ouvi falar, ouço sempre, sobre a carnavalização das festas populares da Bahia que saudosistas consideram inaceitável, o lobby de artistas igualmente, aquela história de que nas festas juninas devem reinar apenas o forró, o xote e o baião e de que cada manifestação popular de raiz deve preservar as suas raízes. Traduzindo esse desejo numa linguagem simplista: tudo deve ser mantido como antes, chamamos isso de tradição.

O mundo romântico é lindo, mas não é o mundo real. Infelizmente, ou felizmente, a depender do ponto de vista. Mudam as tradições, muda o público, muda o ambiente, lembrando que se faz música para agradar e integrar todos os públicos. Óbvio que o contexto favorece um estilo preponderante. Baiano, como todos os nordestinos, adora forró, mas adora também axé, sertanejo, pagode, funk e essa diversidade, do agrado da maioria, é que resulta na chamada carnavalização das festas populares com a qual convivemos há mais de um século.

Vale lembrar a máxima do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade: “Nunca fomos catequizados, fizemos foi Carnaval”. Grande verdade. Um dia, já faz mais de cem anos, o Carnaval passou a fazer parte das Festas de Reis, influenciando as tradicionais cantigas das pastorinhas, de origem lusitana; alguns Ternos de Reis diversificaram com alternativas musicais. O Arigofe foi um exemplo disso e, naqueles idos, ternos que se apresentavam nos coretos dos bairros desfilavam no Carnaval, com os mesmos integrantes. Outro figurino e outro estilo musical, óbvio.

E assim, o Carnaval passou a fazer parte de todas as festas: Dois de Julho, Lavagem do Bonfim, Iemanjá, Itapuã, Conceição da Praia, Nossa Senhora da Purificação... através de cordões, afoxés, grupos de samba, blocos de índios, trios elétricos e em tempos recentes, nos palcos.

O Ghandy foi um promotor dessa carnavalização, Carlinhos Brown, igualmente. A Festa da Boa Morte manteve a sua identidade, mas, a contragosto das Irmãs, conviveu com esses grupos. Hoje é festa de turistas e devotos, com mínima participação dos cachoeiranos, no ritual oficial, mas à noite, na praça, o público comparece em peso. É a hora do Carnaval.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feirasManter as tradições é um ideal, apenas isso, na prática significa excluir públicos. A garotada dos paredões - maioria da população de Salvador hoje - por exemplo, foi criada num ambiente de paredão. Bebês já frequentavam no colo da mãe. O forró é um apêndice e um pretexto para a festa. Prevalece o pagodão baiano, que alguns chamam de rasteiro, o mesmo que vai às ruas no Carnaval, animado pelos trios elétricos. Os que querem preservar as tradições de raiz fazem a sua parte, o público das periferias também honra as suas raízes: o desce, mexe, remexe, rebola, se abaixa, bota, tome, empurra, me agarra do paredão.