Nelson Cadena: a derrubada da Sé - cicatrizes abertas

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  • Da Redação

Publicado em 9 de agosto de 2013 às 03:35

- Atualizado há um ano

Se há um episódio da história da Bahia que deixou cicatrizes abertas foi a derrubada da Igreja da Sé, em 7 de agosto de 1933, oitenta anos transcorridos esta semana. Cicatrizes hoje representadas na escultura da Cruz Caída que Mario Cravo erigiu no Belvedere, em 1999, quando Salvador comemorava 450 anos de fundação e tardiamente redimia-se de seus pecados.A derrubada da Sé, diferente de outros eventos marcantes de nossa história, deixou sequelas e feridas abertas. O bombardeio da Bahia em janeiro de 1912, um episódio traumático que repercutiu em todo o país e mudou o traçado urbano da principal rua da cidade, sequer é lembrado hoje; o tempo promoveu a reconciliação entre as forças oligárquicas, então antagônicas, responsáveis pelo conflito. Já a derrubada de Sé deixou evidências e para sempre do despropósito da iniciativa. Durante vinte e um anos, entre 1912 e 1933, debateu-se a derrubada do templo para deixar o bonde passar. E passou. Mas, não por muito tempo, pois na década de 40 a prefeitura proibia o tráfego de veículos sobre trilhos na Praça da Sé. Derrubou para quê? Para que derrubou?A Igreja da Sé começou a ruir a partir das ideias reformistas que contaminaram os administradores brasileiros em inícios do século XX, o princípio sanitarista do Barão de Houssmann, o célebre arquiteto francês que saiu passando o trator por cima de tudo que parecesse viela, rua estreita, traçado antigo, e então criar corredores de vento e belos jardins para o mundo admirar. Pereira Passos botou abaixo meio Rio de Janeiro nesse propósito e esbanjou recursos para alargar duas vezes a capital do país. Seabra, na Bahia, aderiu ao princípio e, a partir de 1912, de consciência pesada pelos efeitos do bombardeio e espírito empreendedor, justiça lhe seja feita, mudou o perfil do chamado Centro Histórico.O plano previa a derrubada de várias igrejas e houve capadócios na imprensa que justificaram a iniciativa com o argumento de, vão se algumas, mas temos centenas ainda. Apenas São Bento resistiu, em parte graças à sagrada cólera dos monges que não o permitiram. Caíram as igrejas de São Pedro, Rosário, a fachada do Convento e Igreja das Mercês. E, em agosto de 1933, o “trambolho” da Sé que assim ficou estigmatizada pelas forças “progressistas”, no longo debate em que a imprensa rendeu-se ao capital e aos interesses da Linha Circular, administradora do serviço de bondes, principal interessado e beneficiário. Com a igreja, ruiu um quarteirão inteiro e, enquanto as marretas profanavam ossos insepultos, o Cardeal da Silva, contava os 300 contos recebidos de indenização, devidamente autorizado pela Santa Sé.Em 1916, o Cabido Metropolitano já admitira cortar cinco metros da igreja e, em 1919, em autorização solicitada ao Vaticano, o Bispo já tratava da demolição em favor do transporte público e dizia “não tem valor artístico nem é necessária para o culto porque perto dela há seis outras igrejas”. Tinha sim conforme provaram historiadores, críticos de arte, arquitetos, no longo debate de duas décadas em que o Instituto Histórico da Bahia assumiu para si a defesa do “trambolho” e que obteve as adesões das mais respeitáveis instituições culturais do país. Até um projeto alternativo para a linha do bonde elaborado pelo engenheiro Gama Abreu foi apresentado. De nada adiantou.O prefeito Americano da Costa assinou o decreto, Juracy Magalhães lavou as mãos, Getulio Vargas recebeu um ofício com o apelo para sua intervenção e respondeu em particular para não se comprometer em público. E assim caiu a Sé. Descobriu-se depois que não era um trambolho, tinha belas imagens e um magnífico altar do Santíssimo Sacramento com incrustações em ouro, tocheiros enormes e lâmpadas buriladas. Uma parte do “espólio” foi parar nas igrejas, outra nos ourives para derreter o ouro e a prata e as pedras de cantaria lavradas acabaram como entulho em Cosme de Farias. Derrubaram a Sé do estalo relatado pelo Padre Vieira. Para os baianos ficou em penitência a lembrança que um artista plástico transformou na fratura de uma cruz.