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Mariana Paiva
Publicado em 19 de janeiro de 2025 às 07:47
Quem pensa que o 7 a 1 ficou lá na Copa do Mundo se engana: é todo dia e aqui mesmo, quando alguém se contraria com qualquer coisa numa relação de serviço. A ideia errada é a de que se pagamos temos direito inclusive a xingar, ofender e até agredir fisicamente se as coisas não saem como queremos. Já viram as notícias? É o que mais tem. Basta uma contrariedade para as pessoas supostamente civilizadas jogarem de lado o verniz social e destilarem racismo e tudo mais que não presta. Sepulcro caiado que chama.
Mas não precisa ir longe não. Com certeza você já viu isso em restaurante: se a comida demora um pouco, vem fria ou não tão saborosa, sempre tem alguém que se exalta com o garçom ou a garçonete, trata com desdém, humilha. E aí, é nessa hora, bem nessa hora, que a gente conhece as pessoas. “Ah, mas eu tô pagando". Sim, está. Mas existem mil formas de resolver a situação sem perder a razão, e você escolhe a mais tosca, que está ali à mão porque é a sua, muito sua, desde sempre: o preconceito. Tem gente que se gaba, né, de não levar desaforo pra casa? Apois. Vira e mexe escorrega numas coisas assim, de se pegar chamando gente de “preta", de “viado", dizendo que "tinha que ser coisa de mulher", e por aí vai. Quando acaba o argumento é que começam as pessoas de verdade.
Pode chamar a gerência. Pode escrever um e-mail. Pode ligar pro 0800. Mas para que fazer tudo isso se tem um preconceito na ponta da língua, prontinho, pra falar? Como eu disse, não precisa abrir jornal pra ver. Ou você não conhece ninguém que grita com a empregada porque ela fez algo de um jeito diferente do que foi pedido? Pois é. Quem autoriza uma pessoa a gritar com a outra? O salário que é pago no fim do mês? A cor da pele? Uma morar na área nobre e outra na periferia? Não, nada autoriza uma pessoa a gritar com a outra. Mas tem gente racista que vive em Nárnia.
E é por isso que quando um ano novo começa a gente precisa olhar bem para as mesas onde a gente senta. Vai continuar frequentando as de sempre ou vai se levantar de algumas, onde os valores não são os mesmos? Se “eu quero partilhar a vida boa com você", talvez não me caiba estar num restaurante assistindo você destratar um garçom que está ali trabalhando há horas cansado porque a cerveja não veio tão gelada assim. Ou te ver passar direto sem dar bom-dia à senhora que limpa o banheiro do shopping quando você entra, ou ao porteiro do prédio que abre a porta para você passar. São escolhas. De quem faz e de quem está por perto, de querer ou não seguir ao lado.
O que me lembra o retrato de Elizabeth Eckford, uma das primeiras estudantes pretas a frequentar um colégio exclusivo para pessoas brancas em Arkansas, nos Estados Unidos. No primeiro dia de aula, ela e mais oito alunos como ela começariam a estudar lá para fazer cumprir uma medida judicial, e entrariam pelos fundos, mas ela não chegou a saber. Ao tentar entrar pela porta principal, Elizabeth foi alvo de todo tipo de insultos e violências (inclusive físicas, porque foi empurrada pela escada). Isso lá na década de 1950. Tem foto na internet: virou um clássico, e era pra estar longe na história uma vergonha dessas, mas todo dia, em todo canto desse Brasil e desse mundo, alguma coisa assim é reeditada. Basta pensar que do racismo nem mesmo crianças têm descanso, sejam elas filhas de Bruno e Gio ou morem na comunidade. Sim, claro que é diferente. Mas ainda assim é racismo. E criança.
No mundo do verniz social, todo mundo é tão gente boa que está acima de qualquer suspeita. Na primeira contrariedade, aí é que a gente sabe. “A boca fala do que o coração está cheio". Gente que vive dizendo que o mundo tá chato demais agora porque não dá mais pra ofender os outros como antes, porque com o "politicamente correto” suas piadas ficaram ultrapassadas e vergonhosas. Né?
Para quem é racista e outras coisas mais, respeito é palavra mal vista. Limite é sempre alguma coisa absurda, incômoda, careta, porque atrapalha quem se espalha no preconceito de se espalhar ainda mais. Mas a gente não vive em estado de natureza, né? Tem lei, tem celular com câmera, tem rede social, e tem também - ainda bem - a escolha individual de estar assim ou de ser assim. Continuar assim, apesar de. Seguir agarrado ao preconceito, sem repensar as atitudes. É meio triste, né? “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", já diria Camões. Sempre é tempo.
Mariana Paiva é escritora, jornalista, head de DE&I no RS Advogados e idealizadora da consultoria Awá Cultura & Gente