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Publicado em 23 de fevereiro de 2025 às 05:00
Houve um tempo em que a gente era ensinado a desviar dos mal encarados na rua. Só depois entendemos que isso era só mais um episódio de racismo cotidiano. De que cor era a pele dessas pessoas que nos ensinavam a evitar, você lembra? Era preta. E a daquele pessoal que tinha nos anúncios de festa de gente bonita? Branca, né? Pois é. O nome disso é racismo estrutural. A péssima ideia de apertar mais forte a bolsa quando uma pessoa preta passa perto e relaxar quando quem vem de lá tem a pele clara, mesmo que seja essa a pessoa que vai nos roubar. >
É que veja só, como a gente tá de saco cheio de saber, quem vê cara não vê coração. Não vê mesmo. Mas nossa sociedade racista acha que “agora ficou tudo chato, não pode falar mais nada”, e inventa apelidos com base na cor da pele. Né? Ou você não conhece ninguém que faz assim? E sabe quem faz isso? Não, não é nenhum monstro, nenhum capeta. Não tem chifre, não fede a enxofre, não anda arrastando rabo na rua quando passa. É gente. Igual a mim, a você, a todo mundo. Ninguém diz quando vê, nem parece. Às vezes chega em casa, faz carinho no cachorro, se duvidar é até bom pai. Só é péssimo pra humanidade, mas isso aí são outros quinhentos. Ou não?>
Um dos grandes trunfos do filme Zona de Interesse, que no Oscar do ano passado ganhou um monte de coisa, é bem isso: é lembrar que as pessoas capazes das maiores monstruosidades podem levar vidas bem pacatas, e até mesmo serem amorosas em alguns momentos. Fazer coisas cotidianas que eu e você fazemos, mas guardar dentro delas um jeito de naturalizar a crueldade, uma perversão, que a gente não tem. É assim o filme: uma família alemã que mora vizinha a um campo de concentração, o pai que trabalha lá, e a vida que segue alheia ao som das pessoas sendo queimadas e morrendo. Crianças brincando, almoço na mesa, um dia depois do outro. Uma casa e uma família normal, não fosse pelo massacre que acontece do outro lado do muro. De lá eles herdam roupas, bijuterias e outros objetos, porque quem morre não vai mesmo mais usar. >
Quem conta bastante com esse preconceito que mora nos olhos de tanta gente são os estelionatários de toda ordem: sabe que o melhor jeito de não levantar qualquer suspeita é sendo branco e bem vestido. É a cor da pele o melhor acesso que existe para quem comete crimes dessa ordem, e que tem como cúmplice uma sociedade racista. Enquanto moradores e visitantes dos prédios são barrados nas portarias de prédios de luxo porque são pretos, estelionatários e outros golpistas passam com um simples aceno porque são brancos e têm “cara de rico". Como é que um rico se parece, na sociedade em que vivemos? >
Ou você não conhece nenhuma história de lojas para público de alto poder aquisitivo em que pessoas deixaram de ser atendidas porque não eram brancas o suficiente para parecer que podiam consumir ali? Vamo lá, claro que conhece. Isso sem falar que são essas aí que vendem os uniformes dos judeus nos campos de concentração - sim, a roupa branca com listras azuis verticais, dê uma pesquisada na internet - que foi transformada em tendência da moda do momento. Se tem algo de mais mal gosto do que se vestir da mortalha de alguém eu desconheço. É bem fundo o buraco onde estamos.>
Como diz a maravilhosa música de Chico César, “Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa”. Porque às vezes a pessoa faz até caridade pra livrar a culpa, mas não se sustenta no amor ao próximo quando a vida testa. Só consegue fazer com hora e data marcada. Mas é gente boa, se dá com todo mundo. Vez por outra os bichos todos que moram dentro saem pra dar um passeio. Aí os absurdos saem da boca: A tal da festa com gente bonita que era apenas um monte de gente branca, a conversa de que passou ali um mal encarado que era apenas um homem preto. Se afrontada, a desculpa de que não sabia. Ou se distraiu. Ou nem acredita nisso de raça, veja bem, “somos todos irmãos”. Aham. O capeta quando vem sempre fala que a dor que ele não sente é vitimismo. É saber reconhecer e dar o nome certo que ele tem.>
Mariana Paiva é escritora, jornalista, head de DE&I no RS Advogados e idealizadora da consultoria Awá Cultura & Gente>