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Mariana Paiva
Publicado em 29 de dezembro de 2024 às 06:44
Mulheres fortes também passam por relacionamentos abusivos. Não somente as frágeis, as que não têm como se sustentar, as que acreditam que o homem deve ser o provedor e o lugar de onde emanam todas as decisões. Também as mulheres incríveis que você conhece, aquelas que a gente admira e quer ser igual “quando crescer", já tiveram seus momentos dentro de amores violentos. Duvida? Pergunte.
Pra começo de conversa, é porque muitas de nós, mulheres, crescemos em famílias em que o amor vinha num combo com a violência. Onde sua educação sentimental devia ter sido de florescer, foi de “eu te amo, desde que você reze pela minha cartilha". Durante muito tempo, confundimos educação com a permissão para os pais fazerem qualquer coisa, inclusive serem violentos. A raiva passa e vem amor, mas só até a próxima discordância. Não é bem esse o ciclo infinito de carinho/violência do relacionamento abusivo?
Pois é. Então já sabemos de onde vem. “Ah, mas ela não viu isso em casa. Nunca fiz isso com a mãe dela". Talvez não. Mas como ela foi tratada? Não falo de impor limites - todo mundo precisa deles pra crescer com educação -, mas do ciclo de violência, explosões de raiva que, quando se acalmam, viram aconchego. E assim vai. Não seria mais que normal que essa menina, ao virar mulher, ache que isso é amor? Afinal, foi assim que ela aprendeu em casa.
Não tô dizendo que a culpa é dos pais: é uma infinidade de fatores que, juntos, dá no que dá. Nas estatísticas. E nos segredos que correm por aí e que tantas vezes nem chegam até as delegacias, por vergonha, culpa, pressão social. A vítima sabe bem onde essa corda parte: ela sofre as violências todas no corpo e ainda é cobrada depois de não ter contado às pessoas. Se contou, vai passar o resto da vida ouvindo que “foi safada porque voltou" para um relacionamento abusivo. A uma altura dessas, as pessoas não sabem a dinâmica dessa violência, e fazem questão de seguir sem saber, pra não ter que olhar pro próprio rabo. Dói, né? Imagina pra vítima.
Ou então aquele discurso de "Se fosse comigo ele não se criava". Verdade, talvez não. Mas talvez sim. Ou talvez não ele, mas outro, em circunstâncias diferentes, simplesmente porque há tantas gerações, nós, mulheres, aprendemos o amor de um jeito muito desastrado em casa. Ele vem num combo tipo McLanche Feliz (só que infeliz) com a violência: te amo mas você tem que fazer o que eu quero, bem-me-quer, mal-me-quer, o cravo brigando com a rosinha todo dia que aprende que o amor despedaça mas depois abraça e fica tudo bem.
E haja anos de terapia (pra quem pode, infelizmente, pagar, porque barato não é) para desconstruir essa ideia de que amar é assim mesmo: um dia muito bom e um dia muito ruim. Pois não é. É poder ser amada apesar de discordar, ser respeitada mesmo dançando uma dança diferente, sua própria dança, de seu jeito. Fazendo suas escolhas, que podem não ser a do outro. Não viver temendo arroubos, gritos, objetos arremessados, paredes esmurradas (você também já viu uma parede de drywall marcada por um homem raivoso?), ameaças e marcas roxas no corpo. Que são só um repeteco de um filme antigo e muitíssimo familiar.
É que os pais ainda podem tanto: amar suas filhas pensando nisso, educar lembrando que algum dia elas vão escolher alguém, talvez um homem para viver junto, e que elas vão precisar desse referencial. Diante de um tóxico, uma mulher vai se lembrar de como a menina foi amada e vai recuar. Ou então vai afofar e deitar na cama, porque tudo ali lhe parece com estar em casa.
Para nós, mulheres, os relacionamentos abusivos estão sempre à espreita, ao menor sinal de distração. São sempre uma escalada: o feminicídio não começa com uma ameaça de morte, mas com uma voz levantada depois de um dia difícil no trabalho. “É preciso estar atenta e forte", mudando a música, mas também a narrativa de amor da família de onde viemos, reescrevendo ao nosso próprio modo essa história.
Mariana Paiva é escritora, jornalista, head de DE&I no RS Advogados, colunista do Correio* e idealizadora da consultoria Awá Cultura & Gente