As portas fechadas

Pessoas com deficiência de locomoção, ao sair de suas casas, têm muita dificuldade em encontrar um banheiro acessível. Não temos nos prédios, não temos em muitos restaurantes. E tá tudo bem? Não, não tá.

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  • Mariana Paiva

Publicado em 14 de setembro de 2024 às 23:01

Em que banheiro da empresa em que você trabalha uma pessoa com deficiência consegue ir? E uma pessoa trans, vai enfrentar um caminho que até lá vai ser tranquilo, ou cheio de cochichos e reprovação? Sim, a gente sabe que empresa tem política de inclusão e diversidade, mas meus anos de professora me ensinaram que papel é o lugar preferido pra cachorro fazer xixi. E o vento leva. Efetividade é outra conversa, que geralmente se deixa pra depois, porque é incômoda. Mas veja bem: e se a pessoa trans ou com deficiência for seu melhor cliente? Ou você nunca pensou nisso?

Todos os dias as coisas mudam um tiquinho (ou muito) de lugar no mundo, e isso também. Se você pensava que ter um banheiro com acessibilidade ou uma empresa que saiba receber com dignidade qualquer pessoa não é assim tão urgente, pois eu lhe digo: é. Porque o dinheiro, essa força motriz da sociedade, também vem mudando de mãos. Aquelas historicamente brancas, masculinas, vêm sendo gradativamente substituídas por outras, e que também querem se ver nas empresas com as quais negociam. Já pensou se alguém, na hora de uma fusão de empresas, pede um relatório de pessoas pretas em cargos de liderança pra você?

É que a gente sabe que o simples argumento de que todas as pessoas precisam ser respeitadas não alcança todo mundo, infelizmente. Tem uns seres humanos que não são bons nem pra dividir uma Coca-Cola de um litro. Para essas é preciso lembrar que um passeio de meia hora no Linkedin revela mais que o vídeo que sua tia compartilhou pelo WhatsApp. Tem mulheres, pessoas pretas, pessoas com deficiência e pessoas trans em lugares de poder nas grandes empresas brasileiras. E se elas fossem visitar a sua?

Eu digo. Pessoas com deficiência de locomoção, ao sair de suas casas, têm muita dificuldade em encontrar um banheiro acessível. Não temos nos prédios, não temos em muitos restaurantes. E tá tudo bem? Não, não tá. Aí o empresariado diz que não contrata porque não tem condições de fazer um banheiro adaptado a esse público. Será? Mas e se fosse um cliente? Ia querer que ele segurasse o xixi por horas, arriscando perder o contrato por conta de uma reforma?

Mesma coisa com pessoas trans. Concorde você ou não, elas existem e são uma realidade no mercado. Como elas são tratadas no processo seletivo? São livres para escolher o banheiro com o qual se identificam para usar, ou a simples ida pode lhes causar a desclassificação? E eu volto com a pergunta de antes: e se a cliente mais importante de seu negócio fosse uma pessoa trans? Você ia permitir os olhares e os cochichos ou ia investir em educação para a inclusão para seu time?

Tem mais pergunta que resposta, porque bola levantada é a que é a boa no jogo. O mundo inteiro está mudando, e não digo que seja fácil, nem que o mercado é bom nem amigo de ninguém. Mas também não dá para ser ingênuo e achar que as mudanças só acontecem da porta da empresa para fora. É sobretudo do lado de dentro: as organizações são uma versão mini do mundo. É preciso adaptar, e todos os dias.

E olhe que estamos falando de banheiro, aquele lugar pra onde a gente corre quando a natureza chama. Dizemos "necessidades fisiológicas", porque são demandas do corpo, próprias do existir no mundo. O acesso aos banheiros não devia ser negado a pessoa alguma, por qualquer razão, mas não é isso o que vemos na prática nas empresas.

O que fazer então? De onde está, da cadeira que ocupa, cada pessoa pode e deve se abrir para pensar novos futuros. Inovação vem de diversidade, de gente diferente ocupando os mesmos espaços. De experiências que podem até começar incômodas, mas que, depois de ajustadas, se tornam naturais, e beneficiam a organização com melhores resultados, mais produtividade e lucro.

A gente fala tanto em abrir portas nas empresas, mas as dos banheiros, essas tão necessárias, seguem fechadas para as pessoas trans e com deficiência. Ainda é tempo de mudar.

Mariana Paiva é escritora, jornalista, consultora em Gente na Awá Cultura e Gente, e head de DE&I do RS Advogados