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Kátia Najara
Publicado em 5 de janeiro de 2025 às 08:27
Desde a chegada dos tratores e escavadeiras comendo mais um pedaço do que restou de mata atlântica começaram os rumores.>
Do outro lado da rodagem, na venda de Seu Nô e Dona Bieca, o povo só curiava e dava parecer.>
- Vem coisa grande aí. >
- Será se é mais uma fábrica de galinha? Zericórdia, ninguém guenta mais essas mosca, discunjuro!>
Dona Bieca varrendo estava varrendo ficou.>
- Eu ouvi dizer que aquela fábrica de perfume que abriu ano passado gostou tanto daqui que ia fazer um centro de abastecimento e distribuição.>
- É nada. Isso é carro. Fábrica de carro. >
- Já viu o tanto de fábrica de um tudo pro lado de cá agora? É biscoito, é galinha, é fertilizante, é perfume, é carro. É o quê assim?>
- Eu vi na televisão que o governo facilita e cobra taxa baratinha pra essas empresa grande, que é pra gerar emprego e desenvolvimento pra nossa cidade.>
- E por falar em televisão qual é o caso dessa aí embaixo do braço?>
- Ah! É que a gente vai passar o fim de semana na praia e eu peguei ali no conserto que tava ruim o volume.>
- Oxe, e vai levar a televisão pra praia debaixo do braço?>
- Claro! E a gente vai fazer o quê de noite? O >
senhor sabe que mainha não perde as novela dela e domingo tem a final da Lança dos Ramosos. >
Dona Bieca varrendo estava varrendo ficou.>
A obra crescia a pleno vapor. Engenheiros e supervisores de quando em vez paravam para tomar um caldo de cana em Seu Nô. Nisso sentiam o cheiro bom da cozinha de Dona Bieca e perguntavam se saía almoço. E Seu Nô, todo prosa com o pessoal da capital:>
- Oxen, e num sai o quê? Minha senhora hoje tá preparando frigideira de maturi com feijão verde aqui do nosso roçado.>
- Maturi?>
- O senhor não sabe o que é maturi, não? Assunta, é a castanha do caju verde. Uma beleza! Era típico aqui da região, mas agora quase ninguém faz mais porque era os >
menino que catava, que aquilo solta um leite que queima as mão. Mas agora eles num querem mais saber de catar maturi não. Tão tudo trabalhando nas fábrica, que a cidade precisa desenvolver, né?>
Dona Bieca dibuiano estava dibuiano ficou.>
Engraçado era que ninguém dava uma pista do que ia ser e o povo também não perguntava, como se não fosse permitido dirigirem-se aos homens da capital, e como se fosse bom o clima de mistério e o jogo de adivinha.>
- Seu Nô! A descarga tá sem água! >
- Mas será possível que até a água do poço que nunca faltou deu agora pra rarear?>
Dona Bieca pitando estava pitando ficou.>
Até que um dia o galpão rodeado de imenso estacionamento tomou forma incondundível. >
Era um hipermercado. Conclusão confirmada com a chegada de um caminhão todo carregado de carrinhos de compras. >
- Que beleza! Agora a gente não vai mais precisar ir pra Feira de Mãe Ana pra comprar um biscoito recheado diferente pras criança levar pro colégio; vai ter um bocado de marca diferente de cerveja, pizza, lasanha, comida instantânea e congelada pra facilitar a vida da gente. Oh, glória!>
Nisso entra Neinha com o pote de doce de leite que Seu Nô revende as porções. Dona Bieca crava os olhos no frasco por alguns segundos. Neinha, traduzindo o olhar de Dona Bieca, justifica:>
- O doce tá diferente porque mainha num guentou mais labutar sozinha com os bicho. A gente vendeu Malhada, os porco e as galinha pra Seu Cosme e a gente tá vendendo a roça pra ela morar numa casinha no centro perto >
de lá de casa na Rua da Delegacia - tá toda asfaltadinha, tiraro aquelas pedra véia portuguesa tudo, só tu vendo que beleza. E eu tu sabe que nunca gostei de cuidar de bicho. Ainda mais agora de plantão na fábrica da Candura. Ah! Sabia que eles dão desconto de 20% nos cosméticos perto do vencimento? Mas só para as funcionárias que batem as metas. >
- Pois então, mainha tá meia borocoxô, mas ela acostuma. E é por isso que o doce de leite agora é com leite de caixa e ovo de granja. Ainda mais agora com a facilidade do hiper aqui na frente, ninguém mais vai tirar leite de vaca e nem ovo do fiofó da galinha não, Dona Bieca. Fica um bocadinho só mais claro e mais ralo, mas tá gostoso, e o melhor é que vai sair mais barato pra vocês, ainda tem essa.>
Dona Bieca areando estava areando ficou.>
- Ô Jolivan, vá ali comprar um mamão que sua vó só funciona o intestino com mamão. >
- Oxente voinho, esses mamão ruim que o povo amadurece na tora sem gosto de nada? E o pé de mamão do quintal?>
- É de hoje que esses pé de fruta tudo secaram, num sabe? Esse calor miseravi, os poço tudo secano, essa terra véia num dá mais nada.>
- Isso foi depois que essas fábrica tudo viero pra cá, quer apostar? Sem falar na crise climática. >
- É o quê, menino? Cala a boca que Gravatinha sabe o que faz. Ó o tanto que a cidade tá cresceno! Tem uma farmácia em cada esquina, os banco tudo, e até restaurante japonês.>
Dona Bieca cosendo estava cosendo ficou.>
A inauguração do Atakatudo foi um sucesso. >
Quando Gravatinha cortou a fita inaugural o povão foi ao delírio. Que orgulho de ter em nossa cidade um hipermercado desta envergadura! E tome-lhe fogos de artifício.>
Do outro lado da rodagem Dona Bieca engomando estava engomando ficou.>
Dez anos depois o que era estrada de rodagem virou avenida movimentada, sem espaço algum para vendinhas com mesa de sinuca, caldo de cana, cocada de janela e varanda de cimento queimado vermelho com mesa forrada de chita. Tudo agora era comércio.>
Mas apurando bem os ouvidos ainda dava para ouvir o silêncio de Dona Bieca. >