Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Colunista Kátia Najara
Publicado em 1 de outubro de 2023 às 11:10
Eu gostava daquilo de segredinhos. De truques e receitas guardadas a sete chaves avançando gerações como numa prova de revezamento, passando o caderno pautado de letra cursiva sujo de ovo, farinha, manteiga.
{Mas ó, não confundir com saudosismo tão somente, esse remexer de gavetas da memória tão próprio das pessoas nativas com lua no caranguejo. Não, eu não chego a sofrer de saudade e nada tenho contra os arquivos digitais - valho-me deles - falo apenas do gosto bom de algum mistério que com o passar do tempo diluiu-se, desencantou-se no grande oceano da “generosidade” compartilhada}
A cozinha perdeu os segredos e não há mais mistério algum no vapor dos cozinhados, na suculência das aves e no fofinho dos bolos - que eu nem cobiçava as receitas porque só queria fechar os olhos e embarcar na magia, adivinhando coisas e soltando o fio da imaginação para assistir ao filminho das minhas próprias versões – o que na verdade felizmente ainda não se perdeu de mim.
Hoje é tanta pressa que a gente tem que não há mais tempo nem mesmo para a devida fruição do prazer (do prazer!). É só dar uma googada (credo que nome feio) e está tudo lá, devassado com requinte de detalhes, explícito e claro como o dia, até mesmo pelos mais poderosos chefs do planeta. Todos os segredos foram vendidos.
Isso é ruim? Não. Qualquer pessoa pode defumar, marinar, saltear, flambar, maçaricar, brincar de chef, se divertir, e cumprir a missão com sucesso – desde, é claro, que use apenas os ingredientes e parafernália dos anunciantes. Muitas pessoas conseguem até fazer renda com formação de internet. Isso é ruim? Mais uma vez, não, não é.
Dá até para entender o poderoso chefão publicando a receita do seu carro-chefe nas redes sociais usando a panela do anunciante e recebendo pelo publi o faturamento do mês de seu restaurante, mas qual a motivação de compartilhar a receita - que a vó guardou e escolhia a dedo quem a merecesse - com um mundaréu de gente boa e ruim também? O que mudou nessa linha do tempo entre nós e as nossas mais velhas? Será que nos tornamos mais generosas do que elas ou o quê?
Sem querer soar católica demais, eu tenho pra mim que vendemos barato demais todas as nossas melhores histórias e memórias e segredos e tradições, dignidade e respeito, bom senso e elegância - como quem oferece a pulsante e suculenta jugular às presas de Zuckerberg. Trabalhamos dia e noite para ele em regime de escravidão, soldados seus. E se no início “boiar no mar era de graça” agora que o traficante viciou os usuários a gente PAGA até para vender a vó. E outra! Ainda temos que lidar com seguidores mal-acostumados com essa cozinha assistencialista - que a gente inaugurou vendendo mãe e vó - que exigem esclarecimentos com brevidade, que reclamam se o texto for longo demais, e ficam putos com a sua própria incapacidade de decifrar o poema que diz que a medida do “sal é um dom” - querem exatidão e querem para agora; esculhambam publicamente as receitas doadas se o pesto não for com pinhole e vociferam cuspindo sobre o prato que comeram contra a nossa fé e orientações. Só que a grana desse boleto nem chega pra gente.
E enquanto aqui embaixo tacamos fogo no mar, lá em cima comem peixe frito, divertem-se com toda essa pataquada que não é problema deles, e enchem os bolsos de fortunas inimagináveis, os donos do mundo, dos bancos, e anunciantes de panelas, eletrodomésticos, alimentos sintéticos, experiências prime e coisas que tais. E quem não sabe disso?
A quem já vendeu mãe, pai, vó, e suas mais caras memórias como eu por aprovação social quem sabe esse não seja um tempo bom para preservar para si algumas sementes de segredos, e quem sabe assim reflorestar a vida com um pouco mais de mistérios, magia e imaginação.
Mas não precisa ser radical, só algumas sementes mesmo, porque a generosidade, quando genuína, ainda é uma coisa muito legal que dá árvore frondosa de fruta suculenta.
Por exemplo, o SEGREDINHO DO MEU FEIJÃO é um fundo de panela com cebola, alho, hortelã grossa, louro e pimenta dedo de moça.
Com amor,