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Mostra-me tua cozinha e te direi quem és

As prescrições médicas, os imãs de viagens; o restinho de comida no ralo apesar da louça lavada; a frase no capacho, a lista de compras... é muita impressão digital que a gente deixa na cozinha

  • Foto do(a) author(a) Kátia Najara
  • Kátia Najara

Publicado em 7 de julho de 2024 às 05:00

Estilo de cozinha
Estilo de cozinha Crédito: Divulgação

Por mais que alguém ache que não se relaciona com a sua própria cozinha - por não saber ou não gostar de cozinhar, por não ter tempo, interesse, ou qualquer outro motivo que seja, ainda assim, a nossa cozinha tem assunto de sobra para falar da gente.

Vamos supor que, numa situação hipotética, a gente se veja diante de portas de cozinhas de pessoas de quem não sabemos absolutamente nada. Elas estarão ausentes e a nossa missão é decifrar-lhes um pouco que seja de suas personalidades vasculhando-lhes tão somente suas cozinhas. Que hábitos, histórias, saberes, manias, vestígios e até segredos de sua existência encerram-se ali?

MONO

Ainda que monotemática, monocromática, monossilábica, monóloga, monodisciplinar de binômio geladeira-microondas; ainda que as suas gavetas e armários tragam apenas um jogo de talheres, um prato, um copo e uma caneca, ainda assim ela já terá dito bastante. Um padrão de arrumação e limpeza que aponte para um comportamento extremamente metódico; um número desconcertante de envelopes de diferentes adoçantes - claramente surrupiados de cafés ou lanchonetes - rigorosamente dispostos por cor e tamanho numa antiga lata promocional de Chicletes Mini, escondida de si mesma no fundo do compartimento menos acessível do armário. Que imagem se forma em sua cabeça? Eu vejo um homem de meia idade, solitário, magro e taciturno, os cabelos que restam da calvície pintados de preto, óculos redondos de armação metálica, extremamente limpo e barbeado, e que talvez traga as unhas pintadas de incolor.

MULTI

Mas quando a porta do jogo abre-se para uma cozinha de todas as cores de Frida Kahlo, mobiliário antigo com pilhas de louças de família misturadas a livros de receitas cheios de anotações e marcas de ovo; um papagaio cantando Gardel, um divã fúcsia, uma goteira antiga da torneira da pia que tanto bateu até que furou a pedra da cuba, e um gudang garam recém apagado dentro de um copo com resto de conhaque. Quem é aquela mulher?

ORGÂNICA

A próxima cozinha, muito funcional e orgânica traz apenas o necessário para as funções diárias, quase tudo à mostra e à mão, típico de quem só come o que faz; os sinais de uso nas panelas penduradas, na fruteira de arame já meio torta de tantas bananas e abacaxis e laranjas trazidos da feira na sacola reciclada pendurada no gancho em forma de folha de costela-de-adão; nas marcas de faca e vinho na mesa de madeira com quatro lugares onde claramente são feitas todas as refeições da família; nas três latas de lixo, e nas evidências de uma dieta vegana por dentro da geladeira. Tão habitada e gasta que é possível não apenas sentir a presença daquela família, como quase enxergá-la. Vês?

CROMADA

Enquanto isso, a porta ao lado nos levará a uma cozinha moderna e asséptica de uma Tóquio dos anos de 2047. Blindada e compacta, num primeiro momento parece tão desabitada quanto a do nosso colecionador de adoçantes. Mas só até abrirmos-lhes as portas retráteis de seus armários inteligentes que vão revelar surpresas embutidas inimagináveis como a adega, a lavadora e secadora de pratos, os fazedores de água com gás, de gelo, de café; e a geladeira, freezer, forno e fogão de indução até então invisíveis por mimetismo. Para comer, apenas chocolates, cafés, queijos, vinhos, pistache e bife angus no congelador. Eis os discretos vestígios de uma existência cromada.

MISERÁVEL

A porta da última cozinha não abre de todo, para que caiba ali também a máquina de lavar, que já não lava. A geladeira não fecha direito, é preciso trocar a borracha, e uma imensa crosta de gelo se formou impedindo que também a pequena porta do congelador se feche. Água, margarina e mortadela. Ao abrir o armário vermelho esmaltado, uma avalanche de tupperware e potes de margarina espalham-se pelo chão - que olhando bem através da camada de tempo é ladrilho bonito; dá pra ver pelo vidro embaçado de gordura do forno Esmaltec, que ali já ficam guardadas ali a frigideira preta e a única assadeira bastante amassada. Por trás da cortina de vaquinha sob a pia, um botijão de gás seco. Pelo tamanho do saco de pão, envelopes de Tang e pilha de pratos plásticos na pia eu apostaria em pelo menos cinco pessoas na miséria.

QUAL É A SUA?

Americana integrada com a sala ou reservadinha? Purificador ou filtro de barro? Tábua de vidro, madeira ou polietileno? Le Creuset ou Panelux? Oster ou Mondial? Dependência de empregada ou nem pensar? Fogão forrado com alumínio? Ovo de granja ou quintal? Suco de fruta ou caixa? Folhinha do açougue, pinguim de geladeira? Quente-frio, italiana, coador de pano ou espresso? Comedouro do pet de ossinho ou peixinho? Vaso de hortaliça na janela ou saquinho de ervas finas? Frascos de mantimentos ou pregadores? Copo americano, mug ou de extrato de tomate? Taça Nadir ou cristal? Toalha de mesa ou jogo americano? Fé cega ou faca amolada?

As prescrições médicas, os imãs de viagens e pizzarias na porta da geladeira; o restinho de comida no ralo apesar da louça lavada; a frase no capacho, a lista de compras, o recado na lousa... é muita impressão digital que a gente deixa na cozinha.

Kátia Najara é cozinheira e empreendedora criativa do @katia_najara