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Resposta a uma carta

Vez em quando acertamos o coração de alguém. Seja por uma frase, com sorte, por algum ensinamento

  • Foto do(a) author(a) Kátia Borges
  • Kátia Borges

Publicado em 31 de dezembro de 2023 às 05:00

Sempre que leio algum livro de Haruki Murakami, penso em meu aluno que, ao defender o trabalho de conclusão, entregou-me uma carta. Para além da caderneta de chamada, fomos apresentados pela literatura, sugerindo leituras um ao outro ao longo de todo o curso. Professora, compre um Kindle, ele dizia, enquanto eu ainda resistia, presa ao vício de passar as páginas, ao cheiro físico dos livros.

Não respondi de imediato à mensagem que meu aluno me entregou ao findar a banca. Respondo agora, para que ele saiba que, apesar das tensões cotidianas, ainda há amor nas salas de aula. A relação entre alunos e professores é feita de imperfeições que se complementam e perfeições humanamente possíveis. São pequenas, as perfeições, muitas vezes se resumem a uma palavra. Já as imperfeições se avolumam.

Vez em quando acertamos o coração de alguém. Sabemos que ele nos guarda de alguma forma. Seja por uma frase, com sorte, por algum ensinamento. A cada dez decepções, uma bela surpresa. Como a aluna que me contou a inacreditável coincidência que a uniu a mim, quando ela ainda nem sabia qual rumo seguir. Os orientais dizem que podemos entender se estamos no caminho certo examinando as coincidências.

Se as coincidências que acontecem em nossa vida são boas, positivas, não há dúvidas. Se, ao contrário, elas se apresentam como entraves contínuos, é hora de rever as nossas escolhas. O que mais me comoveu na carta entregue por meu aluno foi saber que ele ainda se recorda de uma de suas primeiras professoras, a quem reverencia como uma influência duradoura. E a confissão de que pensa em se tornar um escritor.

É que eu também ainda me recordo da primeira professora. Ela se chamava Marlene e morava do outro lado da rua, perto da escolinha. Foi a primeira pessoa, fora da família, que me deu um presente. Era um romance, Pollyana, escrito em 1915 por Eleanor H. Porter. De algum modo, ganhar aquele livro fez com que me sentisse uma pessoa, alguém que não era uma extensão da classe, apenas um nome na caderneta.

Ao ler a frase em que meu aluno fala sobre se tornar um escritor, lembrei outra vez de Murakami, um dos poucos autores contemporâneos cuja leitura consegue a proeza de me acalmar, mesmo nas horas mais difíceis, e que coincidentemente é o autor predileto do meu aluno. Ah, vá lá, coincidências não existem. O que o acaso nos conta é apenas um ponto que forma o desenho completo da nossa existência.

O ano acaba hoje, dentro de algumas horas, outro ano começa logo mais, após a meia-noite. Que meu aluno, que minha aluna, que outros tantos, sigam com coragem as suas jornadas nesse solitário planeta azul no qual nos aproximamos e mutuamente nos ensinamos. Se vocês prestarem muita atenção ao modo como a vida  vai interligando os pontos, talvez, consigam dar a esse pontilhado um sentido realmente novo.