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Kátia Borges
Publicado em 9 de dezembro de 2023 às 05:00
Eles se dividiam entre os de casa e os da rua. Os primeiros eram cuidados pela família, tomavam remédios controlados e passavam longos períodos internados em sanatórios. Já os do segundo grupo eram livres, desgarrados, e, sem o freio dos medicamentos, representavam sempre um enigma e um perigo para os outros. >
Sobre os doidos mansos, dizia-se naquela época: “ah, fulano tem um foco na cabeça”. E dava-se o assunto por encerrado. Com esses, podia-se até fazer negócio, visto que oscilavam feito um pêndulo entre lucidez e loucura, revelando a insanidade só em pequenos surtos. Sem diagnóstico correto, eram tomados por excêntricos.>
Muitas vezes, como se fossem um Policarpo Quaresma ou um Golyádkin, personagens de Lima Barreto e Dostoiévski, conseguiam alcançar certo status, desfilando empertigados entre os “saudáveis” com suas ideias extravagantes. Alguns chegavam a ocupar cargos políticos, fazer carreira como empresários. Bons disfarces.>
Já os doidos da rua, ah, esses eram indisfarçáveis. Raramente descobríamos de onde vinham ou quais reveses os havia atingido tão severamente. Geralmente, ganhavam de nós apelidos ridículos e que nunca contestavam: Zé do Bode, Peregrino, Borogodó, Três por Quatro, Galinha Branca. E esses nomes se colavam aos personagens.>
Os doidos da rua dormiam ao relento, sob marquises, ou na varanda de alguém caridoso, e se alimentavam três vezes ao dia graças à bondade dos vizinhos. Muitas vezes, tomavam banho em público, falavam alto, faziam arrelia, reagiam com pedradas às ofensas proferidas pelas crianças que os toureavam cruelmente.>
Aos doidos de casa, em contraponto, reservava-se o silêncio, com a recomendação para falarem o menos possível quando em público, de modo a passarem despercebidos, sob pena de todos os parentes serem considerado propensos à loucura. Peritos em aparentar normalidade, integravam-se felizes a uma sociedade doente.>
Era costume que os doidos da rua adotassem um bairro para chamar de seu, e havia um acordo mágico, embora nunca escrito no papel, de que os moradores ficariam responsáveis por seu controle e sustento dali em diante. Os doidos da rua de minha infância sempre carregavam bagagens, um amontoado de itens inúteis.>
Mas como era admirável o cuidado que dedicavam às suas tralhas, cuidadosamente acondicionadas em sacos plásticos. De vez em quando um deles acolhia em seu desamparo um cão de rua, que o seguia por toda parte. Mas, vejam só — reclamavam os seus mantenedores —, agora me acho com dois para dar de comer.>
Seguros da própria sanidade, comentávamos sobre como certo doido era jovem ou o que um outro contava de seu reino. Porque eram reis e rainhas, mesmo em andrajos, aqueles tristes Quixotes, aquelas Ismálias magérrimas que coloriam nossa infância, os pés descalços no asfalto quente, sem que nos déssemos conta de suas tragédias.>
*Kátia Borges é escritora e jornalista>