Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Kátia Borges
Publicado em 7 de janeiro de 2024 às 05:00
Em menos de um segundo, ele lava três os quatro umbus e me oferece de graça. “Puro mel”, diz, diante da minha recusa, já mordendo um deles >
O Senhor Elisabeth parece não estar nada bem hoje. Fala ao celular com a testa franzida antes de se debruçar na janela do carro. Não sorri logo como de costume. Noto que discute com alguém ao telefone e que lamenta, movendo tristemente a cabeça de um lado para o outro. A expressão de seu rosto denuncia algum problema.>
Quando, finalmente, aproxima-se do automóvel, o riso forçado, emoldurado pelo retângulo irregular da janela, faz a saudação costumeira. “Bom dia, Senhora Elisabeth, o que vai ser hoje?”. Foi essa forma de tratamento que deu origem ao apelido com que me refiro a ele. Desconhecemos nossos verdadeiros nomes.>
Em menos de um segundo, ele lava três os quatro umbus e me oferece de graça. “Puro mel”, diz, diante da minha recusa, já mordendo um deles. E apresenta tantas alternativas de compra e ofertas com preços incríveis que fico confusa e até esqueço o que me levou a parar ali. “Uvas! Preciso de uvas, mamão, mangas, jabuticabas”.>
Alguém o chama do outro lado da barraca, que fica na esquina entre duas ruas, e ele some. Permaneço estacionada em fila dupla. Pelo retrovisor, vejo que o Senhor Elisabeth retoma a ligação. A mesma? Parece. Há algo entristecido em seu semblante, sombra que atravessa a tarde como se a partisse em duas metades. Laranjas, limões talvez.>
Penso em girar a chave na ignição, diante da demora, mas ele retorna, ouve o pedido e desaparece outra vez. Posso ver a sua imagem no espelho central. Observo como vai recolhendo as porções e pondo em pequenas sacolas plásticas, enquanto se move, agilmente, entre as fileiras formadas por caixotes de madeira.>
Suas mãos calejadas acrescentam às latas de medida, antigas embalagens de óleo de cozinha, um pouco a mais de cada fração. Recebo as encomendas já a meio-vidro, e vou lançando os pacotes verdes no piso. Silencio o desejo de questionar ao Senhor Elisabeth se está tudo bem, sei que não, não quero soar esquisita.>
Alguns vínculos cotidianos têm suas próprias regras. Pago as compras, sigo meu caminho. Mas, já em casa, abro o I Ching e pergunto ao oráculo sobre o Senhor Elisabeth. O temido hexagrama 23 aparece com a sexta linha em mutação: há um fruto ainda não comido, um fruto que cairá do céu. Tudo vai ficar bem com ele, penso comigo.>