Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Kátia Borges
Publicado em 14 de janeiro de 2024 às 05:00
Como uma floresta densa, ela disse, e foi procurar o livro que pedi emprestado. Mais uma vez não o localizou em suas estantes. Aquela era a terceira ou a nona vez? Não lembro bem, só sei que era um número ímpar. Em todas as ocasiões, nos encontrávamos no jardim, conversávamos sobre o Destino e eu voltava de mãos vazias.
A casa dela ficava no finzinho de uma rua sem saída, dessas que pensamos nem existirem mais nesse planeta de espigões envidraçados. Espigões era como chamávamos os prédios altos quando ainda havia poucos. Os jornais noticiavam o número de andares e havia até quem fosse conhecer com a família nos passeios de domingo.
A casa dela se parecia com as casas do passado, de piso frio e recuo, onde janelas espiam quem passa como se fossem dois olhos. O que eles viam dos nossos encontros era o movimento ritualístico dessas visitas. Sentávamos sob as folhagens de uma mangueira, numa mesa de madeira com bancos cravados na terra e eu a escutava.
Certa vez leu para mim os capítulos de um romance obscuro que disse ter achado em um sebo e cujo autor nunca revelou. Eu a escutava, porque aquela casa me remetia à da minha avó, e era simples intervalo entre o desejo e o objeto. Já adulta, em antigas estratégias de afeto, apegada aos enredos, aos símbolos, aos mistérios.
Aquele era bom. Nunca passávamos da biblioteca da casa, cuja porta sempre aberta dava para um pequeno quintal que foi transformado em um jardim. Mas o que difere mesmo um quintal de um jardim? Eu era suficientemente tola para pensar sobre essas coisas ali, enquanto mais uma vez ela procurava o livro que pedi.
Se há flores, é um jardim. Mas se há árvores frutíferas, o mesmo já não digo. Eu nunca dizia nada, aliás, porque sentia que qualquer palavra poderia desfazer o encantamento, fazer sumir a casa e a menina, cessar a busca. Desta vez, ela vasculhava o monte de títulos que ocupava o chão, como se estantes horizontais no piso.
Enquanto por lá ficava, quieta de medo de errar, como na infância, alimentava-se o sonho. E sonhos são como pontos cegos em labirintos. Floresta densa que se percorre sem entender direito se há uma trilha, ainda que para dentro, para o centro verde do coração, que é onde se desenham também todos os pesadelos.