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Kátia Borges
Publicado em 13 de março de 2022 às 07:00
- Atualizado há um ano
Trânsito intenso no primeiro dia de retorno à normalidade compulsória. Pego a faixa mais lenta e me irrito ao perceber que entrei na fila dos distraídos que não perceberam o afunilamento provocado por um canteiro de obras. O carro logo à frente acende o primeiro pisca numa trilha luminosa de setas à direita em linha reta.
Motoristas atentos que seguiram o rumo certo fazem de conta que não estão nos vendo. Imprensados contra os piquetes amarelos de cimento fincados no asfalto, seguimos tentando preservar a lataria e retomar o fluxo do tráfego. Dois corpos distintos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo.
Automóveis forçam passagem, ameaçando invadir à força territórios, com base nos livros de Física. Condutores insensíveis, ignorando solenemente o princípio da impenetrabilidade da matéria, avançam aguerridos. A arte de não olhar para os lados é a essência da indiferença. Popularmente, diríamos que fazem a egípcia.
Estamos há uns bons minutos nesse impasse, encurralados na pista dos lentos dentro da noite veloz. Agora já somos um engarrafamento considerável à margem de outro e dependemos da súbita bondade de estranhos. Em biologia, “octópode contra milípede”, partes desconjuntadas de um mesmo bicho de metal.
Agoniado, um moço desce o vidro e, com o braço estendido para fora da janela, faz gestos com estardalhaço, como se estivesse inaugurando um novo alfabeto em libras. É preciso que alguém se comova rápido ou acabaremos perdendo nossos horários. Uma placa escangalhada indica o limite de velocidade naquele ponto.
Mas como, se estamos completamente parados? Periga até sermos cobrados por estacionar em via pública. É necessário que reduzam um pouco a entrada de seus bólides na atmosfera terrestre antes que ocorra um impacto. Um abalroamento a essa altura seria pior que o desvio na rota de algum meteoro.
Nesse primeiro dia de retorno ao intenso trânsito, Oxalá dê certo, cutuco com uma das mãos o porta-luvas até localizar, escondidinho, bem lá no fundo, um antigo pendrive com mantras indianos. Tudo tão antigo. O artefato minúsculo que conecto ao painel do carro. A música em sânscrito que imediatamente silencia tudo.