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Publicado em 20 de fevereiro de 2025 às 05:00
Salvador, primeira capital do Brasil, abriga um patrimônio arquitetônico de valor inestimável. Boa parte desses imóveis é tombada pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan) e pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), e o próprio Pelourinho, um dos símbolos da cidade, é reconhecido pela Unesco como Patrimônio da Humanidade. No entanto, a preservação desse acervo enfrenta desafios imensos. A negligência com esses bens históricos, tanto por parte dos proprietários quanto dos órgãos responsáveis pela sua proteção, tem aumentado os riscos de desabamentos e incêndios, comprometendo não apenas a memória cultural da cidade, mas também a segurança da população. >
O levantamento feito pelo Projeto Casarões, da Defesa Civil de Salvador (Codesal), ilustra a gravidade do problema: das 2.969 edificações vistoriadas, 2.017 são tombadas pelo Iphan, representando mais de dois terços do total, sendo que 287 apresentam risco alto ou muito alto. O trágico incidente na secular Igreja de São Francisco, considerada uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo, escancarou essa realidade. O colapso de parte do teto resultou na perda de uma vida e no ferimento de outras cinco pessoas, além de um dano incalculável ao patrimônio histórico. O restauro do templo exigirá pelo menos cinco anos de trabalho e um investimento milionário, envolvendo uma equipe multidisciplinar de engenheiros, arquitetos e restauradores para recuperar suas formas originais.>
Esse episódio não é um caso isolado, mas um reflexo do abandono que afeta muitos imóveis históricos. Preservar esse patrimônio requer uma política pública contínua e eficaz, com transparência na alocação de recursos e prioridade para a manutenção preventiva. O poder público federal, responsável pela maior parte dos imóveis tombados, deve garantir a execução das ações de preservação, conforme o artigo 19 do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Esse artigo prevê que, quando o proprietário de um bem tombado não dispuser dos recursos necessários para realizar as obras de manutenção e reparação, caberá ao Iphan, às expensas da União, realizar tais intervenções ou até mesmo desapropriar o imóvel para garantir sua preservação.>
O município de Salvador, na vanguarda desse movimento, tem buscado alternativas para reverter esse cenário, promovendo a requalificação de estruturas históricas por meio de programas como o Renova Centro, que oferece incentivos fiscais e créditos tributários para estimular a recuperação desses imóveis. Além disso, a própria Prefeitura tem assumido a revitalização de prédios históricos, como o Casarão dos Azulejos Azuis – hoje transformado na Cidade da Música da Bahia –, o Arquivo Público de Salvador/Casa das Histórias, a Casa do Carnaval e o Mercado Modelo. São exemplos concretos de que é possível conciliar preservação e desenvolvimento urbano. >
Por outro lado, é fundamental fortalecer instituições como o Iphan, que enfrenta dificuldades operacionais evidentes. A autarquia conta com uma equipe técnica reduzida, que precisa ser valorizada e ampliada para atender à imensa demanda de conservação do patrimônio tombado no país. Além disso, Salvador abriga um dos mais expressivos conjuntos de edificações tombadas do Brasil, o que exige atenção especial para sua preservação.>
Preservar o patrimônio histórico não pode ser visto como um luxo ou uma preocupação secundária. É uma questão de identidade cultural, de valorização do turismo e, acima de tudo, de segurança. O Brasil precisa de uma política pública clara e estruturada para a preservação de seus bens tombados. A omissão não apenas compromete a memória da nação, mas coloca vidas em risco. Até quando veremos nosso patrimônio desmoronar diante dos nossos olhos?>
A experiência internacional demonstra que a preservação do patrimônio histórico pode ser um motor de desenvolvimento sustentável. Cidades como Lisboa e Bogotá têm adotado modelos inovadores de recuperação de edificações tombadas, combinando incentivos fiscais, parcerias público-privadas e programas de educação patrimonial. No Brasil, a criação de fundos específicos para a manutenção desses imóveis, com destinação obrigatória de recursos do orçamento nacional, poderia ser uma alternativa viável para evitar que o descaso e a burocracia inviabilizem as ações de preservação.>
Além disso, a sociedade precisa se engajar nesse debate. A valorização do patrimônio histórico não pode depender apenas da ação governamental; é essencial estimular a participação da iniciativa privada, universidades e organizações da sociedade civil. A educação patrimonial, especialmente nas escolas, deve ser fortalecida para que as novas gerações compreendam a importância de preservar a história construída em cada casarão, igreja e monumento. Somente com uma política integrada, envolvendo poder público e sociedade, será possível garantir que os imóveis tombados não continuem a tombar – desta vez, pelo descaso.>
Sosthenes Macêdo é Diretor Geral da Defesa Civil de Salvador (Codesal); Presidente do Fórum Nacional dos Secretários de Defesa Civil das Capitais e Grandes Cidades (FNDC). >