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Paulo Sales
Publicado em 6 de abril de 2025 às 15:37
Tenho comprado mais livros do que darei conta de ler nos próximos meses. São uma obsessão e um prazer. Gosto de vê-los amontoados nas estantes, formando pilhas cada vez mais volumosas, enquanto aguardam a próxima arrumação que sempre acabo adiando, por preguiça ou falta de tempo. Há, entre essas novas aquisições, obras que versam sobre o Mal em suas diferentes vertentes. O Mal prosaico dos assassinos de mulheres, que me assombrou quando li Meus Lugares Escuros, de James Ellroy. O Mal que tudo abarca e dizima, presente em O Crematório Frio, do húngaro József Debreczeni, e em Contos de Kolimá, do russo Varlam Chalámov, que ainda vou ler. >
Nesses dois últimos, as entranhas do Mal são desveladas por quem o viveu em toda sua tenebrosa dimensão. Debreczeni relata a própria experiência no campo de extermínio nazista de Auschwitz e no hospital de Dörnhau, onde prisioneiros como ele, incapazes de trabalhar, eram deixados para morrer de inanição. Já Chalámov rememora sua rotina nos Gulags soviéticos, campos de trabalhos forçados na Sibéria onde milhões de pessoas como eu e você tornaram-se vítimas do frio, da exaustão ou dos fuzis. São temas sobre os quais venho me debruçando com alguma frequência nos últimos anos.>
Acabo de ler V13, livro-reportagem no qual Emmanuel Carrère disseca o julgamento dos atentados cometidos em Paris por extremistas do Estado Islâmico, tentando compreender a dor das vítimas e as motivações dos réus. Uma leitura sofrida, que em certos momentos me fez parar e respirar um pouco antes de prosseguir. Às vezes, me pergunto por que me submeto de bom grado a esse masoquismo intelectual. O que ganho lendo páginas e páginas que embutem tamanho sofrimento? Bem, algo em mim deve apreciar esses encontros com o horror. Como Simon & Garfunkel, que já cantavam em The Sound of Silence: “Olá, escuridão, minha velha amiga. Vim conversar com você novamente”.>
O Mal me fascina? Não, me horroriza. Se o tenho sempre por perto é para tentar desvendá-lo, compreender as engrenagens que o tornam tão poderoso e onipresente. Seja na forma de atos individuais de crueldade, feito um vício solitário, ou como fenômeno coletivo, avalanches de breu que de tempos em tempos pairam sobre a civilização e a fazem retroceder. O Mal seduz e inebria. Ou que outra justificativa haveria para que milhões de seres humanos aceitassem passivamente que um homem, apenas um, ordenasse e pusesse em prática um genocídio? Não há um padrão, um molde preciso, embora apatia, indiferença e medo sejam ingredientes fartos nessa receita.>
Tento entender como o Mal se processa em nossos corações e mentes e o que permite que ele deixe o estado latente e se manifeste. É possível que faça parte de todos nós, por mais que tentemos ocultá-lo. Um manancial escondido repleto de torpeza, impiedade e abjeção prestes a aflorar. Algo semelhante ao que escreveu John Steinbeck sobre a personagem Cathy Ames em A Leste do Éden, fazendo uma analogia entre monstros físicos – pessoas que nascem com anomalias no corpo – e monstros mentais ou psíquicos. Estes seriam almas deformadas, despidas do senso moral vigente em sua época (ou de qualquer senso moral vigente em qualquer período da humanidade):>
“Talvez todos tenhamos um lago secreto onde coisas más e feias germinam e se fortalecem. Mas essa cultura é cercada e os germes da maldade sobem até a borda só para cair de novo no lago. Não poderia ocorrer que nos lagos escuros de alguns homens a maldade tivesse força bastante para saltar a cerca e nadar livremente? Não seria esse tipo de homem nosso monstro e não estaríamos ligados a ele em nossa água oculta? Seria absurdo se não entendêssemos tanto os anjos como os demônios, pois fomos nós que os criamos.”>
Tendo a concordar com Steinbeck. Creio que todos possuímos lagos secretos, nos quais costumamos mergulhar os piores pensamentos, as perdas mais devastadoras, os sentimentos mais sombrios. Guardamos ali nosso rancor, nossa aflição e toda matéria-prima pantanosa da qual somos feitos. O Mal habita uma zona cinzenta, matizada, e muitas vezes não se percebe a fronteira que o separa da virtude. É que nem uma fagulha que carregamos na inconsciência e que um dia deflagra um furor sem sentido, capaz de varrer tudo ao redor. Em dado momento, enlouquecemos, matamos ou morremos e não existe lógica capaz de desvendar a razão disso tudo.>