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Gil Vicente Tavares
Publicado em 5 de novembro de 2024 às 16:05
Outro dia, conversava com Luis Alonso sobre a Rússia. O diretor cubano me dizia do prazer de andar por ruas com nome de grandes artistas e escritores. Os russos amam suas grandes personalidades e, mesmo em casos controversos, vemos uma admiração e respeito pelos que sedimentaram a riqueza cultural e artística do seu país.
Yumara Rodrigues, uma das grandes damas do teatro brasileiro, partiu para o infinito e pouca gente sabe que ela foi grande, foi do teatro, e que seu talento faria ela merecer o status nacional de atriz gigante da nossa história.
Muito se fala, quando reclamamos da invisibilidade de nossa arte, de como o eixo Rio-São Paulo tomou para si a exclusividade da história teatral. Qualquer publicação cita, quando cita, movimentos fora do eixo, mas tudo de importante e melhor e fundamental aconteceu ou no Rio de Janeiro ou em São Paulo.
É verdade inegável, essa visão autocentrada e excludente, vinda dos grandes centros econômicos do país. Sim, o dinheiro fala mais alto e num mundo capitalista ele importa muito.
Mas o que nós, de cá, fazemos contra isso? Ou, melhor, a favor dos nossos?
Lembro quando Márcio Meirelles, ao assumir a Secretaria de Cultura, em 2007, me confidenciou sua angústia quanto aos artistas consagrados daqui. Ele me falava que não sabia o que fazer, e era gente que não tinha sentido concorrer em editais. Logo depois, ele criou o Mestres da Cena, que previa montagem de espetáculo e livro sobre a vida e obra da pessoa.
Durou só duas edições, que contemplaram Harildo Déda e Yumara Rodrigues.
Acabou sua gestão e acabou o projeto.
O próprio Márcio criou editais que provocavam os artistas a pensarem em grupo ou coletivo. Alguns grupos já existentes foram contemplados, outros foram se criando, surfando na onda, e… Bem, só como referência, há oito anos, a Secretaria de Cultura da Bahia lançou seu último edital de manutenção de grupos e coletivos com verba do Fundo de Cultura do Estado, com teto de 200.000 reais. Por dois anos, sendo este valor anual. Podendo ser renovado por mais dois, que se tornariam quatro. Que não foram. Nem renovação, nem novo edital.
A ideia de continuidade, algo óbvio e necessário, era prevista no edital.
Na época, o salário mínimo era de 880 reais.
Oito anos depois, é de 1.420 reais. Quase 70% de aumento.
E a mesma secretaria acaba de lançar, com verba da Lei Aldir Blanc II (porque do próprio bolso faz anos que não investe nada no setor do teatro, dentre outros), edital de manutenção de grupos onde o valor máximo, por apenas um ano, é dos mesmos 200.000 reais. Sem renovação. Apenas um ano, com o mesmo valor de oito anos atrás.
200.000 reais era também o valor máximo para ações de criação e circulação de espetáculos, formação, etc., há oito anos.
Agora, é 100.000. O salário mínimo aumentou quase 70%, mas nosso teto para montar um espetáculo caiu 50%.
Verifiquei a tabela do Sindicatos dos Artistas e Técnicos do Espetáculo e Diversão da Bahia. O piso, leia bem, o piso para se pagar um ator por mês é 3.200 reais. Pensemos um espetáculo de dois casais, algo recorrente e corriqueiro na dramaturgia mundial. E pensemos o básico de ensaio, três meses.
9.600 por ator. 38.400 reais no total. Desculpem a matemática toda, mas é importante.
Pensemos na direção e equipe de produção ganhando 5.000 por mês: 30.000 reais. Cenógrafo, iluminador, figurinista, diretor musical e maquiador/aderecista, ganhando o cachê único de 5.000, também: mais 25.000. Estamos já em 93.400 reais somente de cachês da equipe básica de criação.
Não entraram aí a pauta do teatro, os operadores de luz e som, contra-regra, a dramaturgia, a programação visual, os assistentes, a assessoria de imprensa, costureiras, cenotécnicos, carpintaria e/ou serralheria, dentro outros, de uma equipe básica.
Tampouco o material de figurino, cenário, maquiagem, iluminação. Toda madeira e/ou metalon, sapatos, tecidos, tintas, pregos, impressão de cartazes, banner, talvez busdoor, outdoor (que se paga, mesmo com apoio, para veicular em ambos).
Temos então, duas opções para inscrição. 50.000 ou 100.000 reais.
Faz o que, então? O que fazemos sempre: pagamos extremamente mal a todo mundo (sequer um salário mínimo por mês, geralmente, para alguém que vai sobreviver com esse valor o dobro ou triplo do tempo), ficamos com a parte visual - cenografia e figurino, principalmente - do espetáculo totalmente comprometida e muito abaixo da qualidade mínima ou do desejado para se apresentar ao público, não divulgamos direito, e, ao fim e ao cabo, muita gente faz um espetáculo meia-boca que pouca gente sabe que existiu, terminando a primeira temporada sem perspectiva de volta, desperdiçando dinheiro público num investimento efêmero.
Doze apresentações são uma vergonha. Para um espetáculo passar a existir na cidade, ele precisa ao menos de uns três meses em cartaz. Mas a lógica dos editais, que pedem um mínimo de oito apresentações, e também da pretensa “democratização”, fez com os teatros não cedam mais que um mês. Agora, muitas vezes dão no máximo uma ou duas semanas. Não dá tempo de pegar, para ter público orgânico e boca-a-boca, e passarmos a ganhar da bilheteria. Duas semanas, em média, é um voo de galinha em busca da raposa.
A atual mentalidade estúpida vê no artista um fim, e não um meio. O certo seria incentivar projetos e criadores que pudessem ter vida longa, interessar à plateia, conseguir minimamente andar com as próprias pernas e gerar um retorno em capital simbólico, que, ao menos, compensasse 100% o valor investido. Afinal, é um investimento de dinheiro público para o público. Mas não. Inclusive, tudo isso diz contra. Quanto mais se conquista, quanto mais esforço para se manter, menos chance há de se ganhar algo. E falo aqui de uma política para as artes, vejam bem. Projetos assistencialistas e de inclusão são fundamentais num país desigual como o nosso, mas como já escrevi aqui noutra coluna, misturar tudo no mesmo balaio faz a corda partir sempre do lado do profissional, que vê seu trabalho ser rechaçado e sem perspectivas de acesso aos parcos recursos.
É a amadorização oficial do teatro.
Os gestores da cultura estão se lixando para a obra artística que vai ser gerada. Ele quer posar de bacana por distribuir dinheiro para os necessitados das artes. E, para isso, pontua melhor o projeto que tem morador de rua e ex-presidiário que um projeto que pudesse ter uma Yumara Rodrigues. O critério artístico é irrelevante, no fundo, por mais que eles finjam avaliar isso. Então, nada de Yumara. Porque ela não precisaria. Porque ela já era consagrada. Ou porque o teatro dela era velho e colonizado e não discute os temas da moda da esquerda cirandeira. Ou porque é careta, e tem que abrir espaço para o novo e os novos. É como se o teatro não fosse um eterno passar de bastões numa corrida sem fim, e não coubesse nele todos os tipos de saberes e fazeres conjugados. A palavra da moda, já clichê e cansativa, é “ancestralidade”. Vejo pessoas com olhos marejados a citar ancestralidade pra cá, ancestralidade pra lá, mas a famosa frase “antiguidade é posto”, do candomblé, se esfarinha nesta negação da experiência, conhecimento, solidez e trajetória.
Os números impressionam os que nada sabem da destruição do nosso setor: não sei quanta gente de tal tipo, de tais interiores, não sei quantos grupos sociais e minorias foram contemplados. Se o espetáculo fez seis ou oito apresentações para poucos, e morreu, sendo ignorado solenemente até pela própria classe artística em geral, pouco importa. Importa que a verba, ínfima, defasada e mal investida, foi distribuída para os “agentes de cultura”. Como disse acima, não há investimento de dinheiro público para o público.
Nenhum lado de fato lucra, para além da alegria de artistas de montarem algo para si, e de gestores mostrarem números como num grande bolsa-artista.
Eu realmente não queria ter que voltar sempre a esse assunto. É inútil, cansativo, e mesmo entre artistas pouco reverbera todo esse absurdo. Estão, em sua maioria, entre a desilusão, o cansaço ou a covardia (e o oportunismo, não esqueçamos).
Mas com a ida da maravilhosa, incrível Yumara Rodrigues, fiquei a pensar que, hoje em dia, não só as políticas para as artes não contemplariam ela, como também estão inviabilizando que possam surgir outras Yumaras, a fazerem Jorge Andrade, Beckett, Antonio Bivar, Brecht, Roberto Athayde e tantos outros de maneira magistral, como o teatro precisa para pulsar e viver.
Estão desidratando os profissionais, os mestres, os que mais vinham trabalhando e lutando pelo nosso teatro. E vão assim definhar sem condições de criar até morrer. E sem essa troca entre gerações, a base fica fraca, sem referências e sem mestres. Enquanto fora daqui celebram, no palco, Othon Bastos (que se tivesse ficado aqui estaria na mesma), Fernanda Montenegro, e tantos outros e outras mestres da cena, os daqui vão sendo postos de escanteio, alijados de qualquer possibilidade de políticas para se estruturar. O teatro, que devia ser uma corrida com passagem de bastão - cada um no seu tempo e respeitando quem veio antes -, vai vendo os bastões caírem e a pista dar em lugar nenhum. Vão todos sendo mortos ainda vivos, até se irem de vez. E é sintomático e emblemático que, mais de 48 horas depois da passagem de Yumara, não haja nenhuma nota de pesar, nada na página oficial da Secretaria de Cultura Bahia.
Virá alguma homenagem, rua, placa, estátua, sala com seu nome, agora que ela não pode mais estar no seu lugar iluminado que é o palco, onde a melhor homenagem a ela seria estar atuando? Pouco importa
Os gestores seguem fazendo política partidária e proselitismo levando a arte à total escuridão.
Enquanto Yumara brilha no céu.