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Gil Vicente Tavares
Publicado em 12 de agosto de 2024 às 17:04
O que você faria se ganhasse na mega-sena?
Na maioria absoluta das vezes, uma das primeiras coisas que a pessoa fala é que largaria o emprego e iria viajar muito, ou morar num lugar paradisíaco, ou ajudar familiares, além de viver dos rendimentos.
Mas largar o dia-a-dia do emprego é dito e certo.
Pois caminhava eu e Marcelo Praddo, antes ou depois de um ensaio de Os Javalis, falando sobre ganhar na mega-sena e eu, prontamente, confessei: sempre que penso o que eu faria se ganhasse na mega-sena - sem nunca ter jogado, diga-se de passagem - o que primeiro me vem à cabeça é construir um teatro.
Marcelo me interrompeu e disse - Eu, também.
Seguimos a conversa numa convergência de pensamentos. Sempre que olhamos casarões, pensamos que poderia ser um teatro. E que faríamos um ótimo café, para antes e depois dos espetáculos, e mesmo durante o dia. E que os rendimentos do que fosse aplicado seriam para manter o teatro.
Não, não largaríamos nosso emprego para viajar, ou morar nalgum lugar paradisíaco. Pelo contrário, investiríamos em nosso trabalho para poder trabalhar mais.
Não quero aqui considerar que somos diferentões, mas acho raro e difícil de encontrar gente de outra área que pensasse assim.
Vejam que pensamos em ganhar milhões não para botarmos as pernas pra cima, ou investirmos em lazer e sonhos capitalistas. O individual pouco importaria. Seria tudo para construir um teatro e manter ele.
Fizemos recentemente uma apresentação de Os Javalis a convite - mais que especial - de Sálua Chequer e do Colégio Antônio Vieira, e já ao final do primeiro ensaio eu, Praddo e Carlos Betão falávamos da vontade de voltar com a peça em cartaz. E prontamente fomos atrás de pautas em teatros.
Eu escrevi a peça em 1998. Estreamos ela com o Teatro NU em 2008. Já lá se vão 16 anos fazendo a peça e ainda temos convicção que há combustível a queimar. Plateias a conquistar, temporadas a realizar. Faremos 20 anos com a peça viva e a postos para seguir sendo apresentada.
Mas não conseguimos.
Se quisermos concorrer a editais para ter algum recurso para o retorno, não seremos aprovados - como seguidamente não somos - em edital algum. Há um punitivismo contra espetáculos e grupos que dão certo. Não é à toa que vários estão acabando, ou moribundos, enquanto seguidos editais saem distribuindo dinheiro sem critério algum que contemple profissionalismo, continuidade e reconhecimento.
Pode-se medir o capital simbólico de um espetáculo ou grupo, como retorno ao investimento de um edital, a partir de diversos indicadores. Quantas apresentações a mais o espetáculo fez, para além das previstas no edital. Quantas temporadas foram realizadas depois. Quantos festivais, prêmios e resenhas positivas o espetáculo e/ou o grupo ganharam. Em suma, quanto do investimento inicial da instância pública retornou em capital simbólico.
Nada disso importa ao poder público. O interesse parece ser aportar dinheiro num projeto que cumpra os requisitos da moda em sua inscrição, equipe, temática, engodo formativo, e pouco importa aos gestores o êxito da obra artística.
Parece-me lógico que o produto artístico final, estreado, devesse ser o foco principal de um edital, visto que o poder público deveria investir em algo como um retorno à sociedade. Mas assim como Tom Jobim dizia que sucesso no Brasil é ofensa pessoal, ser exitoso num projeto artístico é uma mácula imperdoável, talvez até algo proibido e incentivado a não acontecer.
Alguns dos melhores espetáculos que vi na minha vida foram de colegas baianos. E eram projetos que eram reconhecidos, tinham público, tinham carreira, e não conseguiram ter fôlego e oportunidades porque parece que o poder público não só não investe no que dá certo, como tenta de toda maneira destruir com isso.
Mas deixemos de lado as secretarias e fundações culturais, pois já são favas contadas que em seus projetos a arte profissional é uma praga a ser eliminada.
Se quisermos voltar com Os Javalis, nós não conseguiremos pauta. Como não estamos conseguindo. Mesmo na cara e na coragem, não conseguimos colocar nosso espetáculo em cartaz porque não há onde fazê-lo.
Claro que fazer na cara e na coragem, hoje em dia, tem sido cada vez mais difícil. Só quem topa entrar no risco geralmente são os artistas. Técnicos, pauta do teatro, restante da equipe querem ganhar o seu certo, na maioria das vezes (salvem as boas parcerias!), então entramos em cartaz hoje em dia devendo no mínimo uns 10 mil reais; e não ter secretarias e fundações dando algum suporte mínimo deixa tudo bem difícil.
Mas vale registrar, sobre as pautas, um fenômeno misterioso em Salvador: não há pautas nos teatros, mas também não há peças em cartaz. Veja bem, eu digo em cartaz, em temporada. E não aquela programação pingada de duas semanas aqui, três semanas acolá que sequer tomamos conhecimento. Isso não é temporada, é evento. É preciso se estar em cartaz para se existir na cidade, na programação das pessoas.
Mas, infelizmente, os teatros se adequaram aos editais. Não se consegue mais pautas longas, pois precisa-se ceder espaço às dezenas de projetos que fazem 6, 8 apresentações (quando não 2 ou 3), e depois somem. Já consta no orçamento o preço a ser pago da pauta. Os teatros garantem o seu, e pouco importa firmar projetos em seus palcos. São dezenas e dezenas de projetos-relâmpago, usando verba pública para apresentar poucos dias e depois dispensar todo o investimento feito no projeto.
E está tudo bem.
Sou do tempo em que falávamos - preciso ir ver tal peça que está lá no Xisto. Ou - ainda não vi tal espetáculo de fulano que está lá no ICBA.
Isso não existe mais. As peças mal estreiam e já acabam. Desafio qualquer pessoa a pensar e listar de cabeça dez peças que estão em cartaz na cidade. Com muito esforço, a pessoa talvez consiga citar duas ou três. E provavelmente, dessas, uma ou duas não estarão mais em cartaz quando a pessoa citar.
Teatro é uma arte difícil. Todos nós criamos fracassos. Ou nos metemos com uma produtora errada, ou com um elenco que se dissolve e fica difícil voltar, ou um espetáculo que é mais custoso voltar em cartaz por conta da estrutura ou da equipe. Mas isso deveria obrigatoriamente ser exceção, porque, afinal, se pretendemos ser profissionais, o foco é realizar espetáculos que interessem, que possam sobreviver em cartaz, que tenham vida longa e condições de retorno, que tenham planejamento, investimento, que possam se pagar e da própria bilheteria se reinvestir em mais temporadas ou apresentações. Que consigam alguma autonomia e independência. Antes de tudo, precisamos fazer valer o que foi realizado com verba pública, mostrando a importância de se investir na gente.
Mas de que adianta tudo isso se qualquer conquista nesse caminho irá esbarrar na falta total de políticas para o setor, na reprovação de editais, e na falta de pautas para se seguir com o espetáculo?
Só ganhando na mega-sena e construindo o próprio teatro. E mantendo basicamente ele com os rendimentos do restante investido.
E, por uma simples questão de lógica, é mais fácil seguirmos morrendo como profissionais, numa eterna roleta russa, do que acertar na loteria.