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O voo do brontossauro

Nas brincadeiras, a liberdade e o descompromisso com o real são a mola mestra de histórias com caminhões de lixo falantes, cachorros que dirigem automóveis e ratos que cozinham

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 19 de novembro de 2024 às 18:33

Voltei da Festa Literária de Uauá com uma grande novidade para meu filho de dois anos. Histórias sobre um bode de lá, com quem tive algumas conversas. Dentre elas, eu recriminando o bode porque ele jogava futebol chutando a bola com os chifres (chifrando a bola, para os de mais idade), e que assim ele iria furar a bola.

Foi a história que ele mais riu.

Em Uauá, participei de uma mesa com o escritor angolano José Eduardo Agualusa, sob mediação do jornalista baiano Renato Cordeiro. Este, com sua usual competência em mediar e entrevistar, foi buscar uma crônica minha e outra de Agualusa onde falávamos sobre o reino da fantasia infantil, e sobre arte.

Eu, prontamente, lembrei de uma cena que vivi com Ulisses, meu filho, numa das brincadeiras que ele mais gosta. Ele pega uma maleta com uns dinossauros coloridos, e sempre escolhe dois deles, me empurrando os bonecos e falando “oi, oi, papai, oi”, incitando-me a criar diálogos entre os animais pré-históricos.

Não, ele não pede que eu resgate diálogos de Tchekhov, Dias Gomes ou Shakespeare. Ele gosta é da bagaceira. Ama quando o pterodáctilo fica bicando os dinossauros maiores, mandando no pedaço, e monopolizando a água com gás que ele sempre bebe e arrota, encontrada no umbigo de Ulisses.

Pois outro dia resolvi variar a história. O pterodáctilo conversava com o brontossauro, e ficava tirando onda porque sabia voar e o outro, não. O brontossauro até começou a lamentar sua situação, mas Ulisses resolveu tudo. Pegou o animal, e o suspendeu no ar, na altura do outro.

Aquele gesto simples, bobo, ingênuo, me pegou de jeito. Achei muito linda a imediata solução dada ao problema do brontossauro não poder voar. Bastava erguer ele no ar.

Nas brincadeiras, livros e desenhos animados infantis, a liberdade e o descompromisso com o real são a mola mestra de histórias com caminhões de lixo falantes, cachorros que dirigem automóveis e ratos que cozinham.

Ulisses gosta que eu pegue bonecos, e que pergunte para ele onde é a areia da praia, para eles deitarem e tomar sol. Ele aponta algum lugar do tapete, ou do sofá, diz “aqui”, apontando o dedo, e os bonecos se deitam para relaxar ao sol. Ele, prontamente, faz o mesmo, e solta um “aaaahhh” de repouso. Que dura alguns segundos, pois os bonecos têm que ir ao mar, passar pelas ondas. No exato local onde ele aponta, em seguida.

Na arte, como na brincadeira e no imaginário da criança, a liberdade e o descompromisso com o real são a mola mestra de histórias, imagens, melodias, movimentos.

A gente vai crescendo, e vai perdendo essa ludicidade da infância. Tomamos seguidas voadoras da realidade, e vamos amadurecendo acumulando frustrações e desencantos. O mundo real nos puxa para o trabalho, as leis, a rotina, as contas, os limites da razão. E isso sufoca, cansa, exaspera.

As pessoas não suportam apenas viver a vida, e buscam sempre alguma fuga disso tudo. Há os que vão para os alucinógenos e drogas que os causem alguma vertigem, delírio, estado alterado. Há os que se agarram à religião, com seus rituais, epifanias, celebrações e palavras que despertam reflexão, meditação e conforto. Mas existe uma manifestação humana que para mim causa tanta vertigem e alucinação quanto as drogas, mas sem criar um vício perverso, destruir com a saúde e pôr em risco a vida da pessoa e de outras ao redor. É uma manifestação mais sofisticada que a religião, pois permite rituais, epifanias, celebrações e palavras que despertam reflexão, meditação e conforto, mas sem prisões doutrinárias e nem fantasias encaradas como verdades.

Como já citei outras vezes, Nietzsche vai dizer que “a arte existe para que a realidade não nos destrua”. Curiosamente, a arte é, dentre essas fugas todas, a que melhor mistura fantasia e espírito crítico, deslocamento da realidade e questionamento da mesma.

Se considero a arte algo sofisticado, e que exige técnica, embasamento e experiência, curiosamente, lá no infinito a sofisticação alcança o mais inocente, primitivo e ingênuo, que é o universo infantil.

Se me causa gigante satisfação alcançar soluções, na arte, com profundidade e complexidade técnica, referências e apuros estilísticos, o que realmente eu busco, como chave de ouro, é o gesto mais imediato, direto, objetivo e puro de uma solução aparentemente simples.

Clarice Lispector tem uma bela crônica, em que ela diferencia o desenho inocente de uma criança, que não é arte, à inocência conquistada por Picasso ao fazer sua arte; destacando a intencionalidade por trás do gesto do artista espanhol. Fernando Pessoa dizia, em seu Lisbon revisited (1923), através de Álvaro de Campos: “Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.”

Aprender para esquecer, como já citei outras vezes. É ter toda a técnica para se permitir arriscar o que aparentemente prescinde da técnica.

Não acho que Ulisses tenha feito arte, sequer que tenha tido um gesto especial, único, notável. Fez algo comum. No entanto, por ser algo tão simples, inocente e bobo, mas ao mesmo tempo tão significativo, desvelou uma solução que é, em si, uma grande metáfora da criação artística.

A vida é um pterodáctilo que voa, oprimindo um brontossauro que, pesado, sabe que não pode voar, e, por isso, se entristece.

A arte faz com que ele voe e encare a vida de frente. Por mais que seu voo seja apenas no reino do sonho, da fantasia, utopia, imaginação. É nesse instante de epifania que há um outro mundo possível.

A arte é como o voo de um brontossauro.