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É preciso oficializar nossa desgraça

É preciso ter coragem para marcar de maneira indelével e visível, na pele do país, nossas cicatrizes ainda incuráveis

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 6 de janeiro de 2025 às 16:49

Numa conversa que tive com alemães que passavam férias aqui, em Salvador, mais uma vez ouvi que as aulas de história, na época do colégio, por lá, eram totalmente voltadas para o período nazista.

Preocupados com uma das maiores tragédias do século XX - quiçá a mais emblemática e cruel -, esses alemães me contavam que os professores macetavam insistentemente na cabeça dos estudantes todo o mal feito pela Alemanha no período em que Hitler esteve no poder. Ao ponto de ser algo tão preponderante que eles sentiam falta de conhecer mais a história das mazelas de outros países e continentes. Contudo, num caso como esses, é infinitamente melhor pecar pelo excesso do que pela falta.

É preciso oficializar nossa desgraça.

Quando estive em Santiago do Chile, causou-me bastante impressão o Museu da Memória e dos Direitos Humanos. O governo chileno deixou registrada, num museu, as histórias do golpe militar que derrubou um governo democrático, e da ditadura que pôs o país num período de trevas, violência, censura, perseguição e tortura.

Documentos oficiais, provas irrefutáveis e registros autênticos já deixaram claro que, entre as décadas de 1960 e 1980, países da América Latina sofreram golpes militares que ocasionaram anos de chumbo e ditaduras que destruíram com a soberania, a educação, a cultura e alma dos países. Além disso, havia também os frágeis milagres econômicos. No fundo, manobras que fariam esses países herdarem crises financeiras que, ainda hoje, reverberam em nossas desigualdades, inflação, juros, desindustrialização e direitos civis; dentre outros.

A notícia recente de que o governo argentino vai fechar o Centro de Memória Cultura Haroldo Conti é mais um sinal de que, parodiando Millôr Fernandes, temos um enorme passado pela frente a nos obscurecer a esperança.

Local de memória dos anos de chumbo, mas também de atividades artísticas, esse centro de memória ser fechado pelo atual governo é algo emblemático, pensando em tudo que esse presidente argentino representa aos conservadores e reacionários.

Emblemático também foi eu ter visto uma postagem em rede social (fujam delas, fujam!), em que um pretenso crítico de cinema denunciava as mentiras (sic) do filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, a partir do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva.

Sua postagem era irascível, comentando como esquerdistas mentem sobre a história do país, em filmes fantasiosos e de viés ideológico. Se não era bem isso, era bem pior, ou tão estúpido quanto.

É recorrente, no cinema argentino, que o pano de fundo dos filmes seja sua ditadura militar, e esta é uma ótima forma de expor as mazelas do passado; notadamente num momento como o atual, onde um governo de direita fecha um museu sobre algo tão importante.

Por aqui, o Globo de Ouro conquistado com todos os méritos por Fernanda Torres põe um foco ainda maior não só sobre nossa produção cinematográfica, como sobre as atrocidades cometidas por oficiais das forças armadas. E não é à toa que o filme argentino de 1985, sobre o roubo dos filhos de presos políticos, feito por militares, vencedor de prêmios em Cannes e Berlim, além de ganhar o Globo de Ouro e o Oscar de melhor filme estrangeiro, tenha o título: A história oficial.

É preciso oficializar nossa desgraça.

O Brasil ainda vive uma relação excessivamente leniente e permissiva com o tema da ditadura militar. Candidatos se elegem exaltando-a, comemora-se o dia do golpe militar em frente ao congresso, e impunemente as pessoas mentem refutando a verdade em rede nacional, em postagens, declarações, e nada de mais grave acontece com elas. Não se pode confundir liberdade de expressão com propagação de mentiras prejudiciais ao bom funcionamento das instituições democráticas. Não se pode confundir liberdade de expressão com exaltação e incitação ao ódio, deturpação e manipulação de informações intencionais para gerarem acusações infundadas, preconceitos, falsas polarizações e fraudes eleitorais e eleitoreiras.

A Ditadura Militar do Brasil prendeu ilegalmente, matou e torturou criminosamente, censurou, fechou congresso, acabou eleições, reprimiu movimentos populares legítimos, fez campanha pela devastação da Amazônia; a lista segue, é vergonhosa, revoltante e imensa. São fatos. Inclusive, registrados em documentos oficiais do próprio governo.

Mas não oficiais para o país.

Ainda somos um país em que ensinar sobre as duas maiores chagas do Brasil, a escravidão e a ditadura, é considerado “viés ideológico” pelos pais conservadores e reacionários. Ao chamar de viés ideológico, ou algo que o valha, está se relativizando as desgraças da escravidão e da ditadura, e de tudo que os seguidos donos do poder, responsáveis por uma das maiores concentrações de renda do mundo, seguem patrocinando de miséria, exclusão, pobreza e subdesenvolvimento.

Denunciar nossos problemas históricos é aprender com eles para não cometermos os mesmos erros. Mas no Brasil isso é considerado esquerdismo, para muitos. Segundo o filósofo Gilles Deleuze, “Ser de esquerda é, antes, pensar o mundo, o seu país, nos seus próximos, e então pensar em si mesmo. Ser de direita é o contrário”.

Estando ele certo, e desconfio seriamente que sim, muito se explica. A pessoa pensa que se ela e seus próximos não foram presos, mortos e torturados, se prosperaram economicamente, e se tudo está bem, o que aconteceu com o resto não me interessa. Aliás, o que interessa é criar uma falsa ilusão de que nada demais aconteceu para, assim, defender o status quo. Relativizar a escravidão e a ditadura é garantir a permanência das benesses que se tem, e fortalecer as correntes políticas que foram mola propulsora das desgraças do país.

Lembro de uma pesquisadora que foi atrás de seus avós alemães, e que ao conhecê-los, percebeu que ambos negavam a existência do holocausto. A estupidez, ou a conivente e cínica cegueira sempre existirão. Tanto em relação ao formato da terra quanto aos problemas do aquecimento global. Tanto ao se relativizar o nazismo ou a ditadura militar no Brasil.

(Nem falo aqui dos que aplaudem tortura, assassinato, perseguição e censura; não tenho estômago para descer ao esgoto da humanidade.)

Mas é preciso que se conte, ensine, corrija, denuncie oficialmente as páginas infelizes da nossa história.

Isso vai evitar que as fake news prossigam fazendo lavagem cerebral nas pessoas? Não.

Isso vai evitar que racistas e fascistas sigam existindo? Não.

Mas oficializar nossas desgraças é despartidarizar nossas tragédias. É dizer de forma absoluta e inconteste que o país viveu um momento nefasto. É preciso ter coragem para marcar de maneira indelével e visível, na pele do país, nossas cicatrizes ainda incuráveis.

Precisamos de um ambiente público onde nossas mazelas sejam verdades irrefutáveis, com provas, documentos, evidências e farto material. Em museus, obras de arte, documentários, livros escolares, projetos pedagógicos obrigatórios, e em leis que coíbam as danosas relativizações da tragédia.

É preciso oficializar nossa desgraça.