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Publicado em 16 de setembro de 2024 às 05:00
“O caminho para cima e o caminho para baixo são o mesmo”.
Uma das máximas de Heráclito me vem à mente ao pensar em nossa montagem de A Visita da Velha Senhora, notadamente quanto à comicidade da mesma.
Era recorrente o comentário sobre as armadilhas da peça. Ao tratar de um vilarejo cujo nome, Güllen, significa estrume, esterco, Dürrenmatt já dá as pistas do quanto ele quer escancarar a merda em que aquelas pessoas vivem, e o quanto são uns merdas seus moradores.
O autor suíço inclusive não perde tempo em expor as figuras centrais da cidade, dando ao nome dos personagens suas funções sociais. O trio que vive à volta de Alfredo Schill, o ex-amante de Clara Zahanassian, é composto pelo prefeito, o professor e o padre. Na peça original, havia também o médico, mas na adaptação, incorporamos as funções do médico às do padre, mantendo esse trio que representa o poder político, o religioso e o intelectual da cidade.
Há também a figura do policial, mas o autor, por mais que dê destaque a isso, põe a polícia num patamar inferior de poder na cidade.
O fato de todos estes citados acima não terem nomes próprios mostra o quanto Dürrenmatt quer tensionar a relação entre indivíduo e sociedade, entre as decisões públicas e a corrupção, o capital, e o interesse privado.
O perigo que gira em torno disso é que os atores criem interpretações rasas, clichês, buscando um humor fácil e caricato através das figuras representativas de um vilarejo. O caminho para a farsa é muito sedutor e este canto da sereia nos perturbou no início dos ensaios.
Contudo, resolvemos mergulhar mais a fundo no texto, e ficamos um mês no que chamamos de ensaios de mesa. Leitura e mais leitura, discussões e mais discussões sobre os personagens, suas nuances, e uma busca pelas contradições, conflitos.
Chegamos, assim, a cenas emocionantes, até. Descobrimos nuances, filigranas no texto que ressaltaram ainda mais a qualidade da obra. O autor não criou uma farsa com personagens tipo, representando figuras recorrentes do poder. Ele se preocupou em escrever cenas excelentes, com possibilidades de leitura, interpretação e sentimentos flutuantes, ora densos, ora cômicos, mas sem perder de vista a “humanidade” daquelas figuras.
Foi muito prazeroso descobrir as camadas da cena, e trabalhar mais a fundo suas sutilezas. Muitas vezes, uma cena, que poderia ser uma mera representação caricata das relações de poder num pequeno vilarejo, acabava por se tornar uma contracena quase tchekhoviana.
O espetáculo todo caminhou para este lado. Mesmo os dois cegos, que já no texto indicam um tom mais cômico com suas falas em coro e repetidas, viraram algo mais grotesco, pateta, num ridículo longe do escracho.
Optamos por ser tudo lúgubre, preto, cores frias, na luz e no cenário. A trilha, minimalista, entrando em cena mais como tensão, como leitmotiv, ao contrário do que poderia ser uma ferramenta de realçamento do humor.
Quem olha as fotos, vê logo que se trata de um espetáculo mais denso, pesado, até triste.
Ledo engano.
“O caminho para cima e o caminho para baixo são o mesmo”.
De todo nosso mergulho nas profundezas do texto, acabamos por escavar, cavucar tanto que chegamos à superfície do humor novamente.
Desde a estreia que Frank Menezes, que faz o prefeito, ator de carreira cômica reconhecida nacionalmente, fica assustado ao ver a reação do público. Ele, que passou dois meses tirando, limpando, esvaziando a maior parte de suas cenas de qualquer tentativa de humor, vem arrancando risos, até gargalhadas em cenas de pretensa densidade.
O mesmo acontece com Celso Jr., o professor; Lúcio Tranchesi e seu padre; e assim a peça segue o mesmo caminho por outras cenas e personagens.
A personagem principal, por ser irônica e sarcástica o tempo todo, naturalmente traz em si o humor para cena, ainda mais desfilando seus maridos, serviçais, mascotes e tudo que ela traz para a cidade, como um caixão de defunto e uma pantera negra. E Ítala Nandi, com toda sua experiência de grande dama do nosso teatro, e que já fez personagens dos mais variados, percebe e investe nisso, e não haveria como ser diferente.
Mas Alfredo Schill, desde logo acuado, encontra em Rui Manthur um protagonismo que conduz tudo atônito; contraponto ao humor que vai sendo jogado em sua cara através da escrotidão e declínio moral de toda uma cidade. E seu contraponto realça ainda mais o perverso humor que o rodeia.
Na segunda semana do espetáculo, com tudo mais nos eixos e mais afinado, as cenas foram se tornando ainda mais densas, as interpretações ainda mais sofisticadas e refinadas, em busca de contradições, conflitos e sentimentos.
E se tornaram mais cômicas ainda. Arrancaram mais risadas, mesmo em momentos de extrema crueldade e escrotidão.
Lembrei de imediato de um pequeno texto de Ítalo Calvino, O Charuto de Groucho. O escritor ítalo-cubano comenta a importância singular do humorista pois “os papéis que Groucho encarna [...] sempre são de alguma forma figuras de poder (ditador, milionário, empresário, grande advogado, professor universitário).”
E completa que “desse poder Groucho põe para fora toda a essência vil, desvela quanta baixeza há misturada em toda afirmação de prestígio, de quanto cinismo toda pretensão de respeitabilidade, de como todo sucesso nada mais é que um precário veraneio sem ilusões antes de tornar a ser arremessado ao nível zero de onde se começou. [...] Groucho despe o mito do sucesso de toda sublimação possível, demonstra o quanto de miserável e cafajeste a afirmação social carrega em si.”
Está aí a pedra de toque de Groucho Marx. E do texto genial de Friedrich Dürrenmatt. Rir dos poderosos. Das estruturas de poder. Subverter o clichê clássico de sempre serem personagens do humor os desassistidos, as minorias, e ressaltar o preconceito através do risível.
O dramaturgo suíço cria uma peça que toca em diversos temas sempre tão atuais como machismo, corrupção, capitalismo, egoísmo, usura, vingança, e, ao fazê-lo, de maneira tão especial, consegue criar uma peça com ares de tragédia, com personagens profundos e sólidos, endurecidos, mas sem perder o humor jamais.
O resultado do nosso espetáculo evidencia algo bem interessante. É desnecessário sublinhar o que se quer mostrar em cena. É descartável usar estratagemas, truques, lançar uma luz escancarada sobre o que se quer passar no palco.
De cá, precisamos apenas saber escolher um grande texto, e ter grandes atores que acessem sua complexidade e riqueza. Sempre repito aos meus alunos uma máxima que criei: o texto não é tudo, mas está tudo no texto.
Se a gente cavar bem, podemos encontrar tesouros escondidos, delicadezas e sutilezas que à primeira vista podem não ser vistos. Mas ao fugirmos dos clichês de personagens caricatos, e buscando suas complexidades e conflitos, o caminho acaba chegando ao mesmo lugar, só que, como um Ulisses de volta à sua Ítaca, prenhe de experiências e riquezas da jornada.
E assim, rimos do poder, da sociedade, dos cidadãos comuns que somos nós, ali, eviscerados em nossa escrotidão e perversidade.
A ponto de rirmos da tragédia.
A ponto de gargalhamos com a cruel encruzilhada em que Alfredo Schill se encontra.
Talvez estejamos rindo de nós mesmos.
Sempre há de chegar uma velha senhora pra gente, como diz o professor em certa cena.
E o riso é sempre um bom alívio para a dor.