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Gil Vicente Tavares
Publicado em 29 de agosto de 2024 às 05:00
Dias atrás, uma pessoa comentou em minha postagem uma advertência. Eu fazia críticas às políticas para as artes, e li que eu deveria ter cuidado com minha postura, pois as instâncias públicas poderiam me boicotar e me perseguir.
É curioso como nossa relação com gestores públicos ainda é totalmente contaminada por um pensamento monárquico.
O rei, ou imperador, é dono do país ou do feudo, ele decide o que fazer de acordo com o que lhe aprouver. Ele foi ungido ao cargo numa linhagem familiar, ou numa tomada de poder, que fez dele o mandante daquele reino, império, nação. E sem permitir oposição.
Políticos são eleitos para gerir uma cidade, estado, país. É uma espécie de contrato temporário. Eleitores escolhem quem pode melhor administrar aquela instância, e aquelas pessoas assumem aquele cargo como nossas funcionárias. Ganharão, por quatro anos, um salário que vem de nossos impostos, da economia gerada por nós, cidadãos, para administrar e investir o nosso dinheiro em melhorias, organização, reformas e avanços nos diversos setores sob sua responsabilidade.
A prefeitura de Salvador anuncia reformas e inaugurações de grande impacto, mas vivemos numa cidade onde o lixo residencial é jogado no chão para ser coletado. A coisa mais imunda, insalubre, que provoca fedor, sujeira, ratos, e nos faz descer das calçadas, que é a colocação de lixo no chão, é algo que simboliza nosso fracasso como cidade. O mais elementar não é feito: Salvador é oficialmente suja, mal pavimentada em asfalto e calçadas, e mal iluminada. Garanto a vocês que se esses três pontos fossem muito bem resolvidos, daríamos um salto gigante de qualidade de vida. E tudo isso precisa ser falado, criticado, pois pagamos nossos impostos, cumprimos com nossos deveres de cidadão para, ao menos, no mínimo, termos calçadas limpas e bem cuidadas para circular.
Estamos cobrando retorno de nossos investimentos e de nossos contratados para gerir, administrar e aportar devidamente nosso orçamento.
Recentemente, saiu o relatório do Observatório da Economia Criativa. Em 2013, a Bahia era o quarto estado a investir em cultura. Em 2022, desceu dez posições. Nos últimos dois anos, o investimento caiu ainda mais, um acinte. Agora, existe a proposta da Secult de divisão do orçamento da Lei Aldir Blanc 2 para a Bahia, em torno de 110 milhões, usando 25 milhões para obras, reformas e aquisição de bens culturais.
É ilegal? Não. A lei prevê isso. Mas acho totalmente imoral que um estado, que parou de investir seu orçamento na cultura, ainda tire quase 25% do orçamento de uma lei para tapar os buracos - por vezes literalmente - de uma seguida má administração dos bens públicos que lhe competem. O Estado retirar 25 milhões de uma lei que veio para suprir a falta de investimentos dos estados, dentre outros problemas, chega a ser um contrassenso.
Dei dois exemplos de diversos que eu poderia elencar, aqui. E o que nós cidadãos temos que fazer diante disso? Calarmo-nos diante de nossos reis, imperadores, czares? Abaixar a cabeça como súditos? A estigmatização dos críticos como os chatos, os do contra, os que reclamam porque não têm, é uma tática velha e tentativa covarde de silenciamento do debate.
Acho curioso quem culpa a sociedade civil pela falta de mobilização. A falta de mobilização vem, justamente, dessa mentalidade monárquica que ainda nos acompanha. Não avançamos como sociedade neste aspecto o quanto deveríamos. Então, é preciso mudar e conscientizar todos os lados, todos os setores da sociedade.
É certo que existem setores organizados, mobilizações, mas ainda persiste aquela ideia de que elegemos pessoas que escolhem pessoas para cargos, e que essa galera toda irá mandar em nosso dinheiro por quatro anos decidindo ao seu bel prazer o que fazer e o que deixar de fazer.
Parece que damos um salvo-conduto total, como se colocássemos cetro e coroa e nos ajoelhássemos frente aos nossos mandatários. E mais, passamos a nos utilizar de indicações, amizades, conchavos, como maneiras de acessar os recursos, numa relação nem um pouco democrática e republicana.
Esse comportamento comum é dos dois lados. Nós, de cá, acabamos autorizando que eles mandem, e eles, de lá, agem como se donos fossem .
E então não adianta criticar, reclamar, nem mesmo que seja uma reclamação de toda uma classe. A classe artística, mesmo, é a mais desprezada e humilhada por seguidas gestões, e tem sido vencida pelo cansaço. Eles acabam com a arte baiana e ai de quem reclamar!
Eu realmente resisto em acreditar que exista uma inquisição contra os críticos. Eu mesmo fui um dos mais recorrentes críticos ao primeiro governo do PT, entre 2007 e 2010, e foi o melhor momento do meu grupo de teatro em toda nossa história, com recursos públicos.
Provavelmente, se eu nunca fui aprovado em nada na prefeitura, por exemplo, tendo a achar que meu trabalho, os artistas que trabalham comigo e meus projetos não têm qualidade suficiente para serem aprovados pela Fundação Gregório de Mattos. A excelência artística que eles buscam é inatingível para mim. E se desde 2015 eu não ganho um edital do Governo do Estado, é porque chego provavelmente aos 25 anos de carreira em decadência, com trabalhos ruins, pecando pela falta de qualidade, e sem conseguir atingir um patamar aceitável artisticamente. Estou cada vez mais resignado de que meu trabalho artístico não interessa a nenhuma gestão da cultura.
E é por isso que não advogo em causa própria. Tento manter as críticas num âmbito mais complexo e amplo.
Preocupa-me que eu seja forçado a parar de criar, por falta de investimentos públicos? Claro que sim.
Mas preocupa-me muito mais que artistas com bem mais história e talento que eu fiquem desesperados, sem perspectivas de trabalho, porque temos gestores que vêm seguidamente errando feio nas políticas para as artes, e seguem inatingíveis, em seus reinados intocáveis.
Numa real democracia, num governo progressista e republicano, as críticas deveriam ter a mais distinta atenção, quando viessem de maneira séria, fundamentada, utilizando-se de números, indicadores, experiências, exemplos claros, ideias sólidas. Os críticos deveriam ser os primeiros a serem ouvidos, a serem convidados ao diálogo.
Eu realmente desejaria que ambos os lados assumissem o lugar devido na política. Que os cidadãos cobrassem e criticassem sem medo de retaliações, perseguições, e sabendo que quem está ali é seu funcionário ganhando do seu dinheiro.
E que gestores não se sentissem donos autorizados a fazer com nossa cidade, nosso estado, nosso país, e nosso dinheiro, o que eles bem entendessem, como se tivessem o poder absoluto de governar como bem desejassem. E sem achar que não devem prestar contas aos seus reais patrões, nós, a sociedade civil; sem aceitar críticas, como se fossem reizinhos mimados e ególatras.
Mas talvez seja pedir demais, para uma província como a nossa.