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Caetano, Bethânia, e a força do Ijexá

É curioso pensar que os ritmos que mais caracterizam o Brasil são provenientes de festas populares de motivação religiosa, mesmo que indiretamente: o Carnaval e o São João

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 20 de janeiro de 2025 às 16:33

Hilário Jovino Ferreira foi da Bahia para o Rio de Janeiro criar, no final do século XIX, o primeiro rancho carnavalesco. Foi também um dos responsáveis baianos pela disseminação do samba na capital brasileira, à época. Tendo ido morar no Rio anos antes, não pôde acompanhar, enquanto criava o formato do carnaval carioca que conhecemos hoje, a criação do Afoxé Embaixada da África, fundado dois anos depois do seu rancho Dois de Ouros, em Salvador.

É curioso pensar que os ritmos que mais caracterizam o Brasil são provenientes de festas populares de motivação religiosa, mesmo que indiretamente: o Carnaval e o São João. E os ranchos saíam originalmente no Dia de Reis.

Sim, outro gênero musical que começou sua popularidade na década de 1940 foi o baião, seguido do xote, o xaxado, e esses ritmos ficaram marcados como músicas juninas, apesar de serem, hoje em dia, parte do repertório da maioria dos compositores e compositoras do país; notadamente no Nordeste e Sudeste, as regiões de maior influência africana, e de manifestações mais canônicas do que se entende como a cultura brasileira mais referenciada.

Assim também foi no Carnaval. Popularizaram-se o samba, a marcha-rancho, o frevo - que é uma variação acelerada da marcha com outras influências -, maracatu, e um ritmo que na maioria das vezes bordeja deferências, homenagens e exaltações nas discussões musicais, que é o Ijexá. Para não fugir à regra, também de origem religiosa, além da força da resistência e afirmação da nossa cultura afro-diaspórica de maneira mais evidente.

A primeira gravação de um ijexá parece ter sido feita em 1930, pelo cantor e compositor baiano Josué de Barros, chamada Babaô Miloquê. O ritmo não pegou como o samba e a marcha-rancho - que já haviam sido incorporados à cultura da alta sociedade, e mesmo com sua primeira gravação anos antes do baião, o ritmo ficou muito restrito aos afoxés e demorou para entrar no repertório brasileiro.

Encontrei uma gravação da canção Afoxé, de Dorival Caymmi, num disco de Vanja Orico de 1964, mas num ritmo diferente, quase marcha. É curioso perceber que com pequena variação de acentuação e célula rítmica, alguns ijexás gravados acabam soando mais como marcha-rancho que propriamente seu ritmo original.

No entanto, da minha rápida e superficial pesquisa, é de 1964 também um disco importante de Camafeu de Oxóssi, onde se há registro da gravação de alguns ijexás, no entanto ainda, como nas canções adaptadas por Caymmi e Josué de Barros, sendo os mesmos reproduções de cânticos do candomblé.

Tenho certeza, e não me envergonho disso, que surgirão pesquisadores e estudiosos que vão desmentir o que registro aqui. Vou adorar saber mais e é o tipo de erro que me engrandece, mas desconfio que talvez o primeiro ijexá, ao menos com algum reconhecimento, a ser gravado como composição própria, tenha sido Shazam, de Ildásio Tavares, Antonio Carlos e Jocafi, no disco de 1972 dos dois últimos, Cada Segundo (a canção virou tema de seriado da Rede Globo, quando estourou de vez, à época).

O próprio Ildásio me dizia que Ossain, também presente no disco, seria o primeiro ijexá a ser gravado como música popular brasileira, mas o arranjo acaba levando a canção mais para o lado da marcha (percebam a levada do violão), quando parece se aproximar do ijexá, e é ainda uma canção cantada em iorubá, como as outras citadas aqui (Caetano Veloso cita Afoxé no disco transa, por exemplo).

Quase na cola, Maria Bethânia grava a canção Filhos de Gandhi, de Gilberto Gil, no disco Drama 3º Ato, em 1973.

Eu teria que sair pesquisando toda discografia brasileira para catar aqui e ali quem fez o que quando e com mais valor. A década de 70 é incrível, a influência afro-brasileira se faz ainda mais marcante, vêm os Blocos Afro, Gil, Caetano, Moraes Moreira, João Donato, e se formos botar na conta as canções com aquela levada típica de Djavan, imortalizada em Sina, entra um renca de gente boa na lista, como o Chico Buarque de Brejo da cruz.

Na década de 80, destacam-se compositores baianos como Vevé calazans, Walter Queiroz, Edil Pacheco, Gerônimo Santana, dentre outros, com sucessos que viraram clássicos da nossa canção, como É d’Oxum, De amor é bom, Ijexá (Filhos de Gandhi), Agradecer e abraçar, somando-se a canções como Beleza pura e Milagres de um povo, de Caetano, e Toda menina baiana e Andar com fé, de Gilberto Gil, mostrando a riqueza do repertório destinado ao ritmo.

Voltando ao carnaval, não foram poucos os ijexás de sucesso, feitos em sua maioria por Moraes Moreira. “Eu sou o carnaval em cada esquina / do seu coração…”; “Alô, alô, pessoal do aló”... Inclusive, o considerado hino da folia baiana, Chame gente, tem diversas gravações que começam com a canção em ijexá, para só depois explodir naquele frevo baiano que Moraes e Armandinho, principalmente, tão bem fizeram. Há ainda versão baiana de Eva, algumas do Chiclete, Luiz Caldas (e há um “elo perdido” entre o galope desacelerado e o ijexá, naquela acentuação dupla do grave, no primeiro, que ecoa nas duas colcheias finais agudas do agogô na célula do ijexá).

Fui, no dia 30 de novembro, à Fonte Nova, assistir ao espetáculo de Caetano Veloso e Maria Bethânia. Não há muito o que se falar mais sobre talento, competência e referência que esses irmãos viraram para a música mundial. Qualquer coisa que eu escrevesse, soaria como repetitiva, e já tendo sido melhor dita por outrem antes de mim.

Contudo, algo me chamou muito a atenção.

Pareceu-me que a dupla tinha se decidido por fazer o espetáculo que eles queriam fazer, com arranjos e repertório que eles queriam, na primeira parte do concerto. E é sobre ela que algo me chamou a atenção.

Estilizadas, ou não, as três primeiras canções eram ijexás. Alegria, alegria num arranjo nesse ritmo (essa marcha que Caetano compôs como reação a A banda, de Chico, provando esse “elo perdido” entre a marcha e o ijexá), Os mais doces bárbaros e Gente.

Na sequência, canções com citações, em sua maioria, de toques de candomblé. Oração ao tempo (savalu?), Motriz (com aquela levada de Sina que encontramos em Trilhos urbanos e Brejo da cruz e que nos remete ao ijexá), Objeto não identificado e A tua presença, que desembocam no samba de roda de Santo Amaro, com 13 de maio e canções tradicionais.

Em seguida, Milagres de um povo e Filhos de Gandhi (a de Gil), dois ijexás, o ritmo voltando com força. Um vassi tocado em Dedicatória e o concerto volta ao ijexá com Eu e água, bela canção de Caetano, gravada por Bethânia, e que entrou claramente muito mais por predileção que por ser um sucesso.

Caetano então cantou sozinho Tropicália, em ritmo de maracatu, assistido por Bethânia.

Bethânia então cantou sozinha Marginália II, em ritmo de ilu (toque para Iansã, e ainda há de se falar mais sobre o “elo perdido” entre o ilu e o baião), assistida por Caetano.

No refrão de Um índio, na sequência, com os dois, a percussão ao fundo me lembrou um alujá.

Confesso que Cajuína me pareceu estranha para encerrar o bloco dos dois, e caberia melhor antes de Um índio. Primeiro, porque terminar o bloco com Um índio seria mais forte. Segundo, porque Cajuína, homenagem a Torquato, depois de Marginália II (letra do mesmo), faria mais sentido e caberia até uma homenagem, mesmo que velada. Mas são detalhes tolos esses aqui.

Após os blocos de sucessos românticos separadamente, a dupla voltou homenageando a Mangueira, Gal Costa, e, depois de mais alguns sucessos, encerrou com Tudo de novo. Um ijexá estilizado para finalizar. E outro, mais funkeado, para o bis, pra ficar tudo odara.

Saí do concerto pensando em escrever algo como “O xirê de Caetano e Bethânia”, tão predominante era a presença dos toques do candomblé no concerto. Mas desde o início havia me chamado a atenção a quantidade de ijexás originais ou criados como arranjo para o espetáculo. E fiquei refletindo sobre a beleza e potência desse ritmo que, originalmente lento, entrou na canção popular em tudo que é andamento, e marcando nossa história com algumas de suas mais belas canções.

Quarta, agora, tem o lançamento do Musicbook de Gerônimo Santana. Rowney Scott, saxofonista e professor da UFBA, registrou em partitura os arranjos originais, para além das melodias e acordes de 11 canções do compositor baiano, talvez nosso maior baluarte do ijexá. Tive a honra de escrever o prefácio, e o fiz mais com o coração do que com a cabeça. E lá eu digo que não é pouco ser um artista identificado a um ritmo tão marcante.

Não à toa, instado pelo lançamento, resolvi escrever sobre o assunto meses depois do concerto (apesar do repeteco que ocorrerá dia 8 de fevereiro, na Concha, ser uma boa oportunidade para se perceber isso).

Repetirei sempre que a música popular do Brasil é a melhor do mundo. Desde a sua diversidade rítmica até sua complexidade poética. Somos o país do samba, com suas incríveis variações do pagode à bossa. Mas também o país do baião, xaxado e xote. Do galope, do frevo e da marcha.

Mas no meio disso tudo, temos o Ijexá.

O espetáculo dos irmãos Veloso na Fonte Nova me provocou a vontade de falar sobre esse ritmo, tão caro a mim, também, como compositor amador bissexto.

O ijexá merecia estar na mais alta estante da música brasileira, ladeando seus grandes ritmos. Cultuado e reverenciado, talvez ao lado do samba (em suas variações) e do baião, como uma pretensa santíssima trindade.

Caetano e Bethânia, à sua maneira, fizeram isso em seu concerto.