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Axé music, Inteligência artificial e o futuro da criação

Se a IA ameaça a criação artística, ao menos por enquanto, eu acho até que é bom que ameace, mesmo. Talvez, possamos ter mais atenção aos criadores e criadoras que se destacam

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 5 de fevereiro de 2025 às 15:41

Resolvi fazer um teste com o aplicativo de inteligência artificial chinês que acabou de ser lançado. Depois dele dizer que eu era filho do poeta Ferreira Gullar, parti para um pedido específico. Imaginar um soneto sobre inteligência artificial, feito por alguns poetas que fui citando.

Já no segundo soneto, parecia estar lendo uma sequência de versos de uma só pessoa, seguindo o mesmo padrão e ideia, mais do que versos de escritores tão distintos quanto Vinicius de Moraes e Fernando Pessoa, Cecília Meirelles e Augusto dos Anjos.

Os versos sobre luz, reflexo, futuro, espelho, frieza, metal, num primeiro momento conseguiram até me convencer. Parecia-me um soneto razoável. Mas ao pedir para se ampliar o estilo, a autoria e a visão sobre o tema, a IA mostrou suas limitações.

Escrevi aqui, tempos atrás, sobre a questão do erro, na arte. Essa crônica foi, inclusive, umas das 44 selecionadas para meu livro Os Joelhos de Schiele, publicado pela Editora Mondrongo. Nela, comento sobre o processo de criação, errático, falho, prenhe de dúvidas, incertezas, que muitas vezes abre caminho para obras incríveis, e que a IA jamais poderia prever, numa projeção ou num cálculo de dados.

Por outro lado, se for para ficar no clichê, no lugar comum, no mais do mesmo, a IA é excelente.

Nos 40 anos da axé music, uma notícia discreta me chamou a atenção. Uma pessoa havia criado uma banda, e fez algumas composições com ajuda da IA. O título da matéria começava com um questionamento: “nova era do axé?”

O movimento surgiu com canções improváveis. Alguns de seus maiores sucessos gerariam - e até geraram - desconfiança quanto ao possível êxito. Pensaram que Faraó é uma letra gigante que jamais entraria no ouvido do povo. A mistura do Brasil com o Egito tinha Ali Babá, califa, dança do ventre, odalisca, tudo menos algo egípcio. Gerônimo Santana, com aquela cara de índio, compôs uma música onde dizia “eu sou negão”, e Chiclete com Banana fez sucesso com galopes, um ritmo mais ligado à festa junina. Tudo meio improvável e confuso.

Surgiram até puristas de um movimento imensamente eclético. Abre a Rodinha e Cadê Meu Coco, de Sarajane; Melô do Cobrador, da banda Frutos Tropicais; e O Que é Que Essa Nega Quer e Fricote, canções quase inaugurais da axé, que tinham como base o samba de roda. Não é que quando o pagode estourou, anos depois, muita gente veio dizer que esse ritmo, filho ou neto do samba de roda, estava descaracterizando o carnaval?

O fato é que ex banda de roquenrou, bloco afro, afoxé, gente do reggae, do forró, do funk e da lambada, de tudo quanto é canto foi aparecendo fazendo música de carnaval da mais diversa, criativa, ritmada e suingada possível.

É bem provável que nunca antes um movimento tenha produzido tantos sucessos. Inclusive muitas músicas que, à época, pelo preconceito com carnaval, com Bahia, com pretos e sua cultura, e outros tantos preconceitos a mais, eram consideradas pobres, ruins, seguem embalando novas gerações e inspirando novas gravações e buscas pelo passado.

A galera que canta “mamãe eu quero mamar” e “alalaô, ooô, ooô” segue reclamando das letras bobas da axé music, enquanto uma perspectiva histórica demonstra a força e resistência desses artistas e canções. E não só isso. Havia também a força política das canções, como o empoderamento da cultura afro-brasileira, bem como o livramento daquela música de corno da era Sarney (que voltou com força). Quer ir embora? Vai. Adeus, bye bye. Não me pegue, não, me deixe à vontade.

No entanto, é preciso que se diga. Tinha coisa ruim? Muita. Em excesso. Para além de um seleto grupo de compositores, arranjadores, cantoras e cantores, se fazia muita bobagem fraca, repetitiva, utilizando-se de formas e fórmulas. Até os melhores se desgastaram, depois de um tempo. Houve saturação.

Muitas bandas ruins foram criadas tentando repetir o padrão.

Muitas canções ruins foram lançadas tentando imitar sucessos. Sucessos que, no início, surgiam aos borbotões, e cada vez num ritmo diferente, com uma temática de letra diferente.

Se a canção de sucesso falava de amor, a próxima poderia falar das belezas de Salvador, ou da beleza da pele preta, ou da cultura afro-brasileira, ou do valor de tal bloco ou banda para o carnaval e para a alegria da cidade.

A axé music tinha compositores de sucesso como o saudoso Carlos Pitta e o saudoso Vevé Calazans, que não eram compositores de axé; e tinham carreiras por fora totalmente distintas. A cara da axé music era e é Margareth Menezes e Daniela Mercury. Carlinhos Brown e Manno Goés. Márcia Short e Ivete Sangalo. Pierre Onasis e Durval Lelis. Marinêz e Sarajane. Tonho Matéria e Bell Marques. E olha que não falei nem metade dos e das craques do movimento. Ache a confluência desse povo aí para se criar algo referencial…

E aí, nos 40 anos da axé music, a IA começa a fazer axé.

Eu ouvi 4 canções.

A IA não teria como mapear a criação musical diversa, complexa e inusitada que foi uma das grandes forças do movimento. Então, fez o quê? Canções quase como jingles, daqueles que numa sentada Walter Queiroz ou Lazzo compõem dez. E que, sendo tudo, não é referência de nada. Ao menos das grandes canções que conhecemos.

Se houve uma crise da axé music, e houve e segue havendo, vários fatores pesaram. Com certeza um deles foi a perda da espontaneidade, diversidade e criatividade das canções, ritmos, arranjos que fizeram desse movimento algo tão importante em nossa música.

Pareceu, à época, que as pessoas começaram a pedir a algo como uma IA para compor e arranjar as canções. Porque de certa forma as canções começaram a vir sem identidade, alma, força, personalidade.

Como nos sonetos que a IA fez pra mim, botando no mesmo bolo doido de versos até João Cabral de Melo Neto, que, pelo que me consta, nunca escreveu - ou, ao menos, nunca publicou um soneto, e com versos dos mais tolos e distantes possíveis de sua obra.

Se a IA ameaça a criação artística, ao menos por enquanto, eu acho até que é bom que ameace, mesmo. Talvez, possamos ter mais atenção aos criadores e criadoras que se destacam, seja em sua simplicidade ou complexidade, seja em sua maneira genuína ou sua maneira sofisticada de criar. Mas sempre com identidade, alma, força e personalidade.

Pedi, para concluir este texto, que a IA imaginasse uma letra de axé music.

O título foi “Sol, mar e axé”.

Sol, mar e axé, vou curtir! / Na praia ou no bloco, é só seguir! / A onda quebra, o coração acelera, / Axé, meu povo, a festa vai começar! / Olha o trio elétrico chegando, / O som da guitarra já tá ecoando! / Pula, canta, dança, não para não, / O verão é nosso, vem pro meu cordão! / O cheiro do dendê no ar, / O tambor me chama pra dançar! / Salve o samba, o reggae e o frevo, / No calor da Bahia, eu me entrego! / Vem, vem, vem, vem, vem! / Abre a roda, deixa o povo entrar! / Vem, vem, vem, vem, vem! / O axé é nosso, vamos celebrar! /Axé, axé, axé! / A energia não vai parar! / Axé, axé, axé! / O verão é pra brincar!

Uma arte que se sinta ameaçada por algo assim merece, talvez, ser ameaçada. O sucesso de algo assim revelaria (revela?) algo mais preocupante que o futuro da criação:

O problema não será (é?) a inteligência artificial, mas a burrice orgânica.