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Gil Vicente Tavares
Publicado em 25 de outubro de 2024 às 05:00
Quando um de meus mestres veio morar na Bahia, vindo da Alemanha, ele logo foi convidado para uma festa. Assim que chegou, alguém lhe disse que iria apresentá-lo a um amigo, que era poeta. >
O alemão tremeu nas bases. Logo na primeira festa, recém-chegado, e ele ia conhecer um Poeta! >
Na sua tradição, em seu país, com suas referências, um Poeta era aquela pessoa extremamente culta, de obra monumental, que depois de anos dedicados aos mais variados estudos conseguiu criar a obra de arte mais concisa, densa, perfeita que é a poesia, a partir de um acúmulo de conhecimentos e experiências intelectuais.>
Tal não foi sua surpresa quando, na sequência, a mesma pessoa seguiu lhe apresentando a mais uma, mais um, e, ao fim, a maioria dos presentes era poeta.>
Ele, de tempos em tempos, repetia essa história pra mim, num tom bem-humorado sobre os folclores da Bahia, e me explicava que alguém escrever versos, publicar poesias, de sua perspectiva, não significava que, necessariamente e consequentemente, a pessoa podia se dar a alcunha de Poeta, assim: “o”, “a” Poeta.>
Foi relativamente fácil para mim compreender a perspectiva de meu mestre alemão, pois cresci rodeado de alguns (pouquíssimos e encantadores) poetas, inclusive de meu próprio pai. Naturalmente, eu acabava por entender O POETA pelas referências que eu tinha.>
O poeta, ou a poeta (poetisa), para mim, sempre era aquela pessoa que de maneira extremamente culta e com total domínio da história das artes, da literatura, da filosofia, conversava comigo de um lugar destacado, como referência, mestre, com visão arguta. Era uma perspectiva estética e ética que sempre me enlevava a outros patamares de pensamento e beleza. Eram pessoas que me pareciam essenciais para regular, desvelar e relativizar a beleza e o pensamento do mundo.>
O Poeta está além do intelectual, a partir deste pensamento, porque ele não só contempla, aprecia, pensa e critica a beleza, mas produz de sua contemplação, apreciação, pensamento e crítica a própria beleza em si. >
Faço a distinção ainda em diálogo com meu professor alemão, pensando aqui em Antonio Cicero e na morte dos Poetas.>
Tenho sentido cada vez mais resistência à erudição e ao rebuscamento estético.>
As pessoas não querem ler e têm raiva de quem o faz, pois quem se aprofunda, em vez de ser alguém que pode abrir caminhos de luz, é alguém isolado pelos que dominam a superfície. O aprofundamento se torna um afundamento, isolamento, reclusão imposta pelo exército da mediocridade cômoda e unida. E o rebuscamento estético se torna, em decorrência disso, um pecado.>
Ildásio Tavares, meu pai, começa um sonetino dele dizendo: “eu sou diferente, / e tu, és também? / sorria contente / que o resto é ninguém”. Essa ideia da diferença, da busca pelo incomum, pelo mais complexo, que outrora era admirado, está cada vez mais sendo alijada. Seja no pensamento ou na criação artística.>
Bacana é quem elogia e aplaude o mesmo que eu. A referência de crítica e pensamento é quem exalta o que eu acho bom e eu concordo. A busca por outros caminhos, por trilhas mais difusas, difíceis, tortuosas e distintas, tem se extinguido e sido rejeitada.>
Antonio Cicero, como é comum aos Poetas, escreveu sobre filosofia. Aliás, pondo na balança, penso ter ouvido iguais ou mais numerosos elogios à sua obra filosófica que à sua poesia. Até porque, considerar alguém Poeta, nestes moldes, já é elevar sua obra a um lugar de qualidade, pois “um poema (bem) realizado é um texto dotado de um altíssimo grau de escritura”, como diria o próprio Cicero ao definir a poesia. Separando também o texto escrito que perdura, que pertence à ordem do monumento, e não do documento, que bem faz o poeta num trocadilho, Antonio Cicero considera que “dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas. Por quê? Porque consistem em formas puras. No limite, não há, neles, diferença entre o que dizem e o modo como o dizem. Como não se pode, num poema, separar o significado do significante, a rigor não se pode dizer em outras palavras o seu significado.”>
Para se ter um altíssimo grau de escrita, é preciso um altíssimo grau de erudição.>
E estamos num mundo que cada vez mais, mesmo em ambientes acadêmicos, a erudição tem sido considerada um monstro que precisa ser enjaulado e guardado a sete chaves, para que ninguém corra o risco de confrontá-lo.>
A decadência do pensamento vira uma bola de neve onde quem cada vez prefere saber menos vai contaminando seu próximo, a geração seguinte e, assim, a celebração da mediocridade impede algo que gera uma preocupação a quem se interessa pela diferença: será que novas gerações formarão novos Poetas?>
Sempre achei um porre aquela conversa de gente mais velha falando que “no meu tempo era melhor”, e que “antigamente” etc. etc. Mas olho ao redor e vejo que cada Poeta que morre é um buraco negro que se cria entre nós. >
A atual formação, discussão e tendência apontam para que seja inviável o surgimento de novos Poetas. A celebração do medíocre, quando não do primário, como referências de pensamento, crítica e reflexão, é a dose diária de cicuta que preventivamente se incute no pretenso intelecto contemporâneo.>
Em seu belo conto O Espelho e a Máscara, apresentado a mim por Saja, que sabia muito bem reverenciar os Poetas, Jorge Luis Borges fala de um rei que encomenda ao seu poeta um louvor pelos seus feitos de guerra. O poeta traz uma poesia que o rei julga perfeita e acima de tudo que foi criado. E dá um espelho de prata ao poeta, pedindo que ele escreva outro, visto que esse primeiro, por mais perfeito e belo que fosse, não havia afetado ninguém que o ouviu.>
O poeta agradece e diz compreender, e volta depois de um ano. Traz um poema que não relata a guerra, mas é a própria guerra. Mais difuso, mais errático, e mais tocante, selvagem que o primeiro. Elogiado pelo feito ainda maior, recebe como recompensa do rei uma máscara de ouro, e o pedido para encerrar a trindade com “uma obra mais alta”. O poeta agradece e diz compreender, e volta depois de um ano.>
Em seu retorno, o poeta “era quase outro. Algo, que não o tempo, havia enrugado e transformado seus traços. Os olhos pareciam olhar muito longe ou estar cegos”. Ele quase não tem coragem de recitar o poema, mas o faz, a sós, ao rei. Apenas uma frase.>
Ela veio pela manhã, quase como uma profanação, diz o Poeta, e o rei percebe-a e busca uma expiação, pois conheceram a Beleza, assim, com letra maiúscula, “que é um dom proibido aos homens”. O rei dá uma adaga ao Poeta, que se mata, e sai pelo seu país como um mendigo, sem nunca mais ter repetido o poema.>
Meu resumo não traduz sequer 1% da beleza do conto, que é quase uma poesia, como os são os contos curtos de Borges. Como diria Antonio Cicero, “como não se pode, num poema, separar o significado do significante, a rigor não se pode dizer em outras palavras o seu significado.” Mas não o quis dizer noutras palavras. Quis apenas trazer, dentre as riquezas de leituras que se podem ter do conto, uma específica. No percurso da escrita, o Poeta começa com a perfeição da forma, das imagens, do belo, dos versos e rimas. Mas não basta ao rei, que queria que o poema fosse um “fogo que arde sem se ver”, uma “ferida que dói e não se sente”, como magistralmente Camões definiu o amor; que é, ao fim e ao cabo, o esplendor da Beleza.>
O poeta, depois de um ano se supera, vai mais a fundo, mergulha na alma da poesia, e traz o fogo e a ferida, refletida no espelho de prata.>
O poeta precisa de mais um ano, ele e sua máscara de ouro, para achar a essência, o absoluto, a forma pura e o poema absoluto. O dom da Beleza.>
O percurso inverso, Borges sabe, jamais aconteceria. Era preciso o caminho através da forma, da técnica, para em seguida se lapidar a arte e fazer o verbo se tornar carne viva e pulsante. É um caminho tortuoso, difícil, provavelmente impossível (o poema utópico e absoluto em Borges chega com a morte e a errância). Mas que o Poeta passa a vida a tentar.>
Quando Antonio Cicero resolve tirar sua própria vida, numa eutanásia assistida, por não se sentir capaz de ser o Poeta que era, ele não tira apenas sua vida, se vai com ele mais um espécime raro, em extinção.>
Roman Jakobson escreveu um livrinho chamado A Geração que Esbanjou seus Poetas, comentando a estúpida perseguição soviética às grandes personalidades de seu país. Mais do que esbanjar, às vezes me parece que seguidas gerações vêm rejeitando e sepultando de vez a possibilidade de existência de uma figura que, por seu caráter de exceção, parece-me cada vez mais necessária a um mundo do ligeiro, superficial, primário e vazio. Se não como espelho ou máscara, ao menos como um contrapeso. Se não transformador, provocador e desestabilizador, como seria necessário, ao menos como referência de um outro mundo possível, imaginado e fantasiado; onde “o belo é o esplendor da ordem” (como diria Aristóteles).>
Disso, vivem as utopias.>
Disso, vivem e morrem os poetas.>