Acesse sua conta

Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google

Alterar senha

Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.

Recuperar senha

Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre

Alterar senha

Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.

Dados não encontrados!

Você ainda não é nosso assinante!

Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *

ASSINE

A mãe de Botafogo e os Pássaros de Copacabana (e Angel Vianna)

O texto que por si só foi dedicado a Katia Alexandria, dedico agora também à memória de Angel Vianna. E que as duas dancem com os astros por aí

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 3 de dezembro de 2024 às 16:17

Fiquei pensando o que escrever, quando soube da partida de Angel Vianna. Grande referência da dança brasileira, Angel foi para mim parte da minha família carioca (apesar de mineira e eu, baiano). Minha mãe dava aulas e como não tinha com quem me deixar, eu acabava ficando meio como mascote da academia de Angel, ao ponto de entrar numa aula de balé para crianças.

Cheguei a fazer espetáculo de fim de ano, e entrei sozinho ao final da coreografia, pois minhas colegas haviam travado e não entraram em cena. Esgotava-se ali todo meu pouco talento que tinha para os palcos e a dança.

Minha mãe voltou comigo para Salvador, tempos depois. Angel e seu projeto de dança levaram-na a fundar uma faculdade, e minha mãe se afastou de tudo. Ficou desligada e apagada de toda essa história.

Décadas depois, meu grupo, o Teatro NU, estava com o espetáculo Sargento Getúlio como convidado do 9 º Festival Palco Giratório Sesc/POA e descobri que havia um espetáculo de e com Angel na programação. Ao fim, fui cumprimentar ela e me apresentei como Gil, filho de Katia. Ela ficou emocionadíssima, nos abraçamos, e ela me falou o quanto minha mãe tinha sido importante para o Espaço Novo – Centro de Estudos do Movimento e Artes.

Lembrei imediatamente de uma crônica antiga que havia publicado no extinto site do meu grupo, onde tínhamos um espaço, Cultura e Cidade, com colunistas.

Como o site sumiu junto com a crônica, resolvi voltar com esse texto, por tudo que ele indiretamente traduz do que foi minha passagem pelo Rio, minha relação com Angel e, mais do que tudo, a importância de minha mãe para mim num aspecto um pouco distinto do papel usual que se costuma designar a uma mãe; notadamente numa cultura machista como a nossa. O texto que por si só foi dedicado a Katia Alexandria, dedico agora também à memória de Angel Vianna. E que as duas dancem com os astros por aí.

* * *

Minha mãe nunca foi uma boa mãe pra mim. Ao menos, para os padrões atuais.

Nasci em 1977, e, oito meses depois, meu pai e minha mãe mudavam-se para o Rio de Janeiro, para o doutorado do primeiro. O tempo do doutorado foi o tempo da separação. Meu pai voltaria início dos anos 80 para Salvador, e minha mãe ficaria comigo com uma mão na frente e outra atrás.

Ao chegar na cidade, os três, fomos morar em Botafogo. Com a separação, entre idas e vindas a Salvador, acabamos por morar numa kitinete na Rua Conde de Baependi. Cortinas feitas de roupa de cama velha. Local da única surra que tomei de minha mãe. Um tapa por recusar um ensopado, o que tinha pro almoço, e dizer desaforo a ela. Fui pra janela gritar: “vizinhos, vizinhos, tem uma mãe querendo matar um filho”. Minha péssima mãe não se sacrificou nem um pouco porque o filho dela não gostava disso, ou só comia aquilo. Passei o dia com fome, dizendo que estava com um buraco na barriga. A resposta de minha péssima mãe era: “não se preocupe, em certos lugares do sertão, na África, as crianças ficam dias sem comer e não morrem; você aguenta”.

À noite: jantei ensopado.

Minha mãe se virava vendendo roupa, dando aula em Angel Vianna, fazendo adereços para a Rede Globo, se envolvendo com espetáculos. Numa dessas, acabei entrando na farra e fiz um papel de onça numa peça infantil: O condomínio da floresta encantada. Até turnê eu fiz. Eu poderia estar num parquinho, num hotel fazenda, numa colônia de férias, mas estava roubando a toalha rosa com a qual Jorge Lafond enrolava a cabeça careca pra sair cantando do banho, e imitando ele, para sua reclamação e bronca comigo: “eu mato esse menino!” com aquele tom bem Lafond de ser.

Meu pai acabou, entre idas e vindas de uma separação onde minha mãe queria estar liberta de depender de qualquer um, oferecendo o apartamento de Botafogo pra gente morar. De lá trago as maiores recordações, que se misturam às de Laranjeiras, bairro onde também estudei na Escola Senador Correa. Minha péssima mãe precisava ganhar a vida, e muitas vezes só podia me buscar tarde na escola. Prontamente, a solução: pedia ao porteiro da escola para me atravessar a rua e me deixar no boteco de Bigode, onde eu tomava uma vitamina de abacate e comia um pão na chapa, conversando com todos os bêbados do local. Sim, minha mãe me largava num boteco com bêbados, eu com 4, 5, 7, sei lá quantos anos.

Sabe aquela história de não ter com quem deixar seu filho? Pois minha mãe resolvia de formas diferentes. Por vezes, me deixava no Teatro Cacilda Becker, onde diversos amigos gays dela faziam peças infantis, e com os quais eu convivia assistindo repetidamente a temporadas de diversos espetáculos, conhecendo as peças de cor, para irritação de outros meninos para os quais, vez por outra, eu contava a peça toda.

Ela ia dar aula em Santa Teresa, eu ia junto. Tive aulas de música onde ficávamos experimentando instrumentos, com um professor daqueles bem doidos, tipo Hermeto. Depois de um tempo, passei a ficar sozinho em casa e a aprender a fazer o básico de comida para me virar. Isso entre os 7 e 9 anos.Minha mãe não perdia um concerto, um balé. Todo convite que recebia ela ia. Não tinha com quem me deixar e me levava junto. Numa dessas, me levou, junto a um casal de amigos gays, para vermos O incrível exército de Brancaleone. A censura era 18 anos. Luís Antonio, ou Beto, não lembro bem qual dos dois, me segurou pelo punho, falou que era meu pai e se responsabilizava. Ao invés de galinha pintadinha, Mario Monicelli. Ao invés de escorregadeira e shopping center, Balé Bolshoi e Paco de Lucía.Quando minha mãe ganhava uma grana, me levava para uma cantina para tomar vinho e comer bolinho de bacalhau – meu vinho era com água e açúcar -, ou para um xou de Gilberto Gil no Canecão. Onde ela ganhava grana, muitas vezes eu me divertia, e assim participei como figuração de Sítio do Pica-Pau Amarelo e Pirlimpimpim 2. E quando Lelena viajava ao exterior, amiga dela, trazia pra mim bonecos do He-Man e do Comandos em Ação que colega nenhum meu tinha; era meu trunfo (e meus presentes de aniversário e Natal eram quando Lelena voltava de viagem, e não nas datas certas).

Vivi as pindaíbas todas de minha mãe com meu filtro de criança. Absorvia muito pouca, mas decisiva informação daquilo tudo. Do Comício das Diretas, em 1984, eu com 6 anos de idade, à eleição de Brizola, vivendo num colégio eminentemente de famílias de esquerda e artistas, pulsava em mim algo político sem bem entender.

Do convívio com artistas, com uma esmagadora maioria gay, tirei referências preciosas e brilhantes como purpurinas que coloriram minha vida e jamais saíram da minha pele. Não fosse minha mãe tão péssima, e eu poderia ter tido uma vida normal, com caprichos, desejos, birras, chiliques, vontades, marras, mimos, dengos. Bem, dengos eu tive. Minha mãe poderia ter um padrão fora do habitual, mas era com um dengo e amor profundo que ela me levava ao Morro da Mangueira, para dormir entre fuzis, no colchonete, enquanto ela produzia um xou de Jorge Aragão na quadra. Era com algum instinto de formação que ela me levava à multidão do centro do Rio, para ver Fafá cantar, Brizola discursar e eu me emocionar de alguma forma com ela. Era com dengo, amor e carinho, e alguma noção que aquilo ecoaria em mim, que os minutos que eu conseguia ficar acordado no Municipal do Rio de Janeiro seriam pequenos pirilampos que se acenderiam em minha mente no futuro, amálgama daquelas experiências.

Foi pensando nisso que minha mãe me mandava de férias para Salvador, ficar com meu pai em depressão, todo ano. Começou assim. Um dia, eu chorava em casa e ela me perguntou por que eu chorava. Eu disse que era saudade de meu pai. Prontamente, ela comprou uma passagem de ônibus, não tinha grana pra avião, e me levou a Salvador pra ver meu pai, em depressão profunda, motivo pelo qual estava evitando me ver. Ela dizia que eu tinha que conhecer meu pai como ele era, e isso balizou minha relação com o poeta com profunda ternura e compreensão daquele homem especial.

Se hoje eu escrevo Os pássaros de Copacabana, e trago em mim uma ideia dos tempos de chumbo, dos gays, das artes e das necessidades que precisamos passar, é porque tive uma mãe de Botafogo, que poderia ser de Laranjeiras, ou de Amaralina, onde passei meus primeiros meses antes de ir ao Rio.

Se hoje, a personagem da mãe entra em meu texto com aquele carinho, se as questões da travesti e da política misturam-se no texto tentando espelhar tortamente sensações e sentimentos da época, muitas vezes, é porque vivi aquele Rio de Janeiro da década de 80 entre políticas, gays, bêbados, loucos e artistas.Os pássaros de Copacabana foi uma peça que escrevi pensando sempre em minha mãe. Quando ela iria rir, se emocionar, e lembrando de tudo que vivi com ela e que me alimentou profundamente.

Meu carinho pela travesti da peça é o carinho que ela me ensinou a ter pela porção melhor que trago em mim agora. Ela sabe a importância que teve pra mim. Por isso, essas memórias confusas, esparsas e imprecisas aqui não são uma confissão à minha mãe.

Mas o que eu sou e faço será sempre dela.