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A justiça, a vingança, e a velha senhora

Clara Zahanassian quer a morte, mas conserva o amor. Quer o amor, mas conserva a morte.

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 29 de julho de 2024 às 07:11

No espetáculo que estou ensaiando, agora, para estrear em setembro, uma mulher volta, bilionária, à sua cidade natal. Seu retorno é para se vingar do homem que a engravidou, negou a paternidade, e fez ela, aos 18 anos, pobre, ser expulsa da cidade como uma prostituta.

Mas em momento algum ela fala em vingança. A palavra que ela usa para significar seu ato, e que acaba sendo absorvida pela cidade, também, na reação da comunidade, é justiça.

A Visita da Velha Senhora (1956), texto do suiço Friedrich Dürrenmatt, é uma das maiores peças de todos os tempos, e a cada ensaio vamos percebendo mais profundamente a beleza e força do texto de Dürrenmatt. Inclusive, fica evidente que uma sinopse curta como a que escrevi no primeiro parágrafo é superficial e simplista.

Falar em vingança atrai o público, é verdade. Eis uma palavra que carrega em si a sede por sangue, o sentido de lição, a força do não aceitar o mal que se foi feito, e o prazer violento de se fazer justiça com as próprias mãos. Açula os ânimos.

Justiça?

A beleza com que o dramaturgo suíço tece a trama da peça, as curvas e complexidades com que ele desenha seus personagens, vão trazendo subjetividades, por um lado, e uma dimensão universal, por outro. Não à toa a peça é montada e remontada no mundo todo, com diversas versões no cinema.

Clara Zahanassian quer a morte, mas conserva o amor. Quer o amor, mas conserva a morte.

É tudo mais amplo, complexo do que uma vingança.

Vingança?

Seguidamente, nos pegamos no ensaio comentando sobre o quão perigosa é a peça quando não fazemos o processo de mergulho profundo no texto. Facilmente, o espetáculo pode virar um lugar comum folhetinesco, com personagens caricatos de uma cidadezinha do interior, e uma vilã trazendo o mal.

Pois é, a vida, ao contrário, tende a caminhar para isso. Dentre outras coisas porque o mal é o que sai da boca do homem, notadamente em situações de revolta, tornando o indignado em vilão, também. Sabe aquela expressão “perdeu a razão”, quando alguém parte para a violência como reação a algum erro de outrem? Pois é.

Basta pensarmos na confusão que se faz entre Justiça e Vingança.

Na maioria absoluta das vezes, quando eu ouço alguém clamando por justiça, essa pessoa não está clamando pela Justiça, para que se faça justiça, para que a pessoa seja julgada à luz do devido processo legal.

A pessoa quando pede justiça está pedindo vingança, castigo, tortura, morte, humilhação. Tudo menos o que significa esse sistema de leis criado para que não mais se decidisse arbitrariamente, equivodacamente, desigualmente, descontroladamente por vingança, castigo, tortura, morte, humilhação.

O Direito surge como uma reunião de regras e leis que visam manter ou regular a vida em sociedade. Um consenso razoável entre juristas para controlar, punir, regulamentar e coibir a sociedade.

É claro que eu sei que haverá eternamente falhas, atualizações, revisões e questionamentos das leis. A justiça pode ser injusta. As penas podem ser demasiado severas ou lenientes. Boa parte das leis foram criadas por homens brancos, héteros e donos do poder. Algo que só me caiu a ficha realmente, lerdo que fui até aquele instante, somente quando li Beccaria. Portanto, mulheres, indígenas, homossexuais, pobres e muitas outras minorias têm uma longa batalha pela frente para fazer da justiça algo mais justo.

Mas nem por isso podemos nos opor ao direito e à justiça, pois o contrário disso é a barbárie. Podemos, sim, criticar, questionar, eleger gente que possa reestruturar e revolucionar tudo isso, mas negar o estado democrático de direito, não.

Recentemente, vi a notícia de que dois assaltantes tinham dado entrada num hospital com tiros em suas mãos. A ação tinha vindo do tribunal do crime, castigando-os por terem assaltado uma padaria.

Não quero me colocar como a quintessência da legalidade, não. A primeira coisa que instintivamente me veio à cabeça foi: toma, tá vendo aí, quero ver se agora vão assaltar de novo, tiveram o que mereceram, esses vagabundos. Sim, ninguém está livre de possíveis instintos primitivos que possam aflorar em nós. Não somos fungos, nem vegetais. Somos animais, mesmo que racionais (às vezes e com muita dificuldade).

Mas eu vou ficar ao lado do tribunal do crime? Vou aplaudir justamente o que eu condeno, num contexto mais amplo? Como me julgar cidadão se recuso as normas e leis da cidade?

Claro que a desobediência civil muitas vezes é a solução (leiam Thoreau) para lutar contra uma sociedade escrota. Mas a desobediência civil que prejudica o outro implica numa questão que vai ser resolvida por quem? No tapa? Duelo? Quem grita mais alto?

Não, pela justiça.

Vejo o ódio no olho das pessoas ao comentar tal crime, tal notícia. É curioso que se você falar sobre Jesus Cristo para esse povo, todo mundo vai se dizer cristão. Porém, no agir o fã clube é todo para o Deus punitivo do velho testamento. Vai-se para o espaço toda lição de perdão, amor ao próximo. A pecadora que Jesus salvou do apedrejamento, cumprindo as leis recebidas de Deus por Moisés, e que Jesus se recusa a condenar, perdoando-a, estaria morta por pedradas em 5 segundos. Inclusive, pelos que até leem o evangelho de João, mas estão mais para o capítulo 14 do Números, por exemplo. Nesta passagem bíblica, Deus rejeita e condena um povo a quarenta anos de sofrimento, e diz, literalmente, no versículo 35: “Eu, o Senhor, falei, e certamente farei essas coisas a toda esta comunidade ímpia, que conspirou contra mim. Encontrarão o seu fim neste deserto; aqui morrerão".

A peça de Dürrenmatt é genial, também, porque todos que buscam a justiça contra o outro acabam se condenando. Porque, afinal, se não conseguimos estabelecer um acordo, em sociedade, onde regras básicas sejam cumpridas em benefício de um razoável equilíbrio da mesma, vai valer quem “bater primeiro”, ou o que arbitrariamente e instintivamente vai decidir uma maioria, sedenta por sangue, cega de ódio.

O personagem do professor, na peça, numa das belas cenas do texto, diz em determinado momento: “um dia chegará uma velha senhora, para cada um de nós, e então vai acontecer conosco o que agora acontece com você”.

Sim, a velha senhora pode ser muita coisa, também, mas será ontem, hoje e sempre a imagem do que corrói uma sociedade, uma população, e seguirá, num eterno retorno, em busca de uma justiça que é sua, que é o que lhe parece justo, devido, certo, de acordo com seu interesse e desejo.

A visita da velha senhora é também sobre a relação doentia entre o poder e a lei. Sobre nosso e qualquer país. Sobre nós.

Compra-se a justiça para que ela não mais seja justa. E a corrupção do judiciário é um eterno nó central. A corrupção do judiciário, não o direito, a lei.

E você que espuma de ódio e clama por “justiça” ao ver um crime, tenha cuidado. Você está estendendo o tapete vermelho para uma velha senhora que, algum dia, virá atrás de você, também.