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A grande feira do Garcia: decadência sem redenção?

Pior do que ser uma cidade do já teve, sempre receio nos tornarmos um cidade do “no lugar disso, nada haverá”

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 7 de abril de 2025 às 16:24

Para quem gosta de cinema, não há novidade nenhuma na qualidade dos filmes de Roberto Pires. Mas para quem gosta de Salvador, salta aos olhos a cidade antiga nas películas, entre a arquitetura colonial, e o ecletismo e modernismo dos casarões mais recentes. Em Redenção (1958) e A grande feira (1961), notadamente, vemos dentre os bairros, o meu, Garcia.

Chamo de meu porque me mudei para cá em 1996. Dos meus 47 anos, são 29, aqui; mais da metade da minha vida. E ao ver os filmes de Roberto Pires, senti aquele incômodo que Salvador nos faz questão que sintamos de tempos em tempos: estamos sempre destruindo o que de melhor nós temos.

Essa fama de “cidade do já teve” infelizmente procede. E em todos os meios em que transito, a sensação é a mesma. Quando vamos falar de nossa arquitetura, vivemos um paroxismo do problema, pois a classe dominante, aqui, geralmente vive num paradoxo.

Como já escrevi algumas vezes, é recorrente vermos conversas elogiosas à Europa, por preservar seus centros históricos, pela programação cultural e pela mobilidade do transporte público. Mas são as mesmas pessoas que abandoram o bairro do Comércio, não frequentam a programação cultural soteropolitana e são incapazes de pegar um metrô da Paralela para a Tancredo Neves, engarrafando a cidade com dezenas de automóveis desnecessariamente, por exemplo.

A pandemia impactou diversos setores da cidade, e no Garcia isso ficou muito evidente. Anteriormente decadentes, ou não, diversos estabelecimentos comerciais fecharam. Escolas fecharam. E o bairro, notadamente a região que devia estar bem viva, por sua localização privilegiada, morreu. Acabaram-se os bares e restaurantes tradicionais. A avenida Leovigildo Filgueiras, que seria um lugar pretensamente atrativo, a partir de determinado horário fica deserta.

Acho no mínimo estranho que uma rua que chega ao Campo Grande e ao Teatro Castro Alves, onde poderíamos ter opções variadas de lanche, almoço e janta, pré e pós espetáculos, por exemplo, tenha quase tudo fechado.

Salvador pós-pandemia mudou seu horário noturno. Restaurantes e bares boêmios passaram a fechar muito cedo. O horário que deveria estar bombando mais, depois das 22:30h, quando as pessoas saem de filmes, jogos, peças, concertos, é já o momento da cozinha fechar e as cadeiras começarem a ser empilhadas. Precariedade de segurança e transporte público e, muitas vezes, custo benefício em manter um estabelecimento até mais tarde têm matado a boemia da cidade e desertificado bairros que poderiam ter muita vida e dinâmica, com seu comércio e opções culturais.

A única coisa que não fecha, e cada dia abre mais, é igreja evangélica. Qualquer mercado, portinha do bairro é um potencial lugar para cultos, num futuro próximo.

Eu olho o complexo do antigo colégio 2 de Julho, atualmente, e fico pensando o quanto aquilo poderia ser aproveitado. Penso logo no Solar do Conde dos Arcos, que poderia ser um teatro municipal, ou abrigar alguma iniciativa cultural de alguma instituição.

O mesmo se dá com algumas casas ao longo da avenida.

Sejam as casinhas coloridas no sentido de quem desce, depois do Antônio Vieira, sejam os casarões no sentido de quem sobe, anteriores ao tradicional colégio, eu fico sempre a imaginar o quão sedutor seria a alguém que, tendo parte de sua vida ligada ao centro da cidade, pudesse requalificar essas residências.

Pois justamente todas essas casas estão à venda.

Me deu um aperto no coração ver a placa de vende-se em toda aquela faixa de casas, como me causa incômodo ver um antigo bar, um casarão reformado, onde já funcionou livraria e lanchonete, e outro, de esquina, que já foi academia, fechados, abandonados.

Eu moro em casa, aqui no bairro. Morar em casa, com toda trabalheira que dá, é diferente. Pode-se fazer o que quiser, plantar numa faixa de terreno qualquer, ter privacidade e possibilidade de fazer churrasqueira, jardim, horta, festa, piscina, academia, bater laje, reformar ao seu jeito, seja lá o que for. É algo que não tem preço.

Uma pessoa razoavelmente abastada poderia olhar uma das grandes casas do bairro e pensar: poxa, estarei no coração da cidade, morando numa casa, posso fazer uma reforma e recuperar uma arquitetura antiga, trazer um ar residencial e arejado à vizinhança, ou mesmo investir num estabelecimento que possa ser frequentado pela população local.

Mas não. Casas bonitas foram já derrubadas mais próximas ao Campo Grande. Uma virou loja de produtos animais, outra virou banco e depois fechou e segue fechada.

Claro que sei de todos os possíveis imbróglios. Eu mesmo liguei para saber o preço de uma dessas belas casas, e me deram um valor acima dos três milhões. O corretor falou que o interesse era vender pra virar agência de banco ou coisa do tipo. Um disparate, mas algo que faz parte do jogo.

Pode haver briga de família. Gente que está vendendo porque quem morava morreu sem herdeiros, ou herdeiros que não moram aqui. Muito se pode especular, mas disso tudo não entendo como não há interesses nem públicos nem privados em preservar e adquirir imóveis assim.

Imagino um futuro próximo com duas possibilidades. A primeira, que me parece menos provável, sendo a derrubada dessas casas para construção de prédios. Menos provável porque mesmo o Garcia sendo um bairro estratégico, central, a uma avenida de vale do Canela, da Graça, da Vitória, dos Barris, da Federação e até de Brotas, além de estar ao lado do coração da cidade, não vejo a especulação imobiliária com olhos para cá.

É mais fácil desmatarem mais um tanto de mata atlântica na Avenida Paralela, e construírem um novo prédio no meio do nada, todo chique, do que se fazer um bom prédio numa localização ótima.

Até porque, como disse lá em cima, a localização ótima que o Garcia tem não atrai essa gente que parece investir cada vez mais em se distanciar da Salvador real, em busca de “ilhas” isoladas sem identidade, com seus shoppings, academias e bares padronizados e sem história e tradição.

A segunda possibilidade, mais real, é a de esses casarões ficarem abandonados, deixando o bairro mais desértico, com menos alternativas de lazer, ou, no máximo, seguirem abrindo e fechando iniciativas mal planejadas e com pouco investimento.

Pior do que ser uma cidade do já teve, sempre receio nos tornarmos um cidade do “no lugar disso, nada haverá”. Salvador provavelmente seguirá desmatando e construindo, crescendo desordenadamente, e dando as costas ao seu centro, ao coração da cidade, e abandonando, assim, ao mesmo tempo, sua história, suas tradições, sua cultura.

Em breve, a cidade passará por uma grande reviravolta. A inauguração do Centro Cultural do Banco do Brasil, da nova Caixa Cultural, dos reformados Teatro Castro Alves e Teatro Vila Velha, e, com fé em todos orixás, deusas e santos, o prédio da Escola de Teatro da UFBA, dentre outros, trarão ao centro uma lufada de novos ares culturais.

Mas assim como me preocupa que, por conta da falta de políticas públicas para as artes, não tenhamos produções locais robustas ocupando esses equipamentos, fico também apreensivo em saber como o mercado imobiliário e o desejo das pessoas vão se movimentar em repensar a moradia, reforma e restauro de bairros centrais.

A estação de metrô do Campo Grande já saiu da promessa e está inclusa no novo PAC.

Não sei se há projetos de urbanismo para melhorar a segurança, limpeza e conforto do nosso centro. No entanto, torço para que não só meu bairro, mas o entorno, como um todo, se valorize como região histórica, cultural e estratégica para moradia, arte e comércio robusto. Notadamente, no embalo das promessas, notícias e inaugurações próximas.

Mas, por enquanto, a grande feira de imóveis está a pleno vapor com suas placas, sem possibilidade de redenção para um bairro que, por sua importância e charme, já foi até “personagem” de filmes.

Torço para que o Garcia, num futuro próximo, não exista apenas neles, como uma lembrança de que Salvador já teve.