A arte, o eu e o reflexo do espelho

Eu, particularmente, fico bastante incomodado em ver como ainda hoje se buscam fora de nós os algozes e as vítimas das desgraças da humanidade

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  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 10 de julho de 2024 às 21:55

Por uma sorte muito feliz de coincidências e oportunidades, estou de volta ao teatro para dirigir uma nova montagem. A Visita de Velha Senhora, de Friedrich Dürrenmatt, uma das grandes peças de todos os tempos, surgiu como ideia de projeto em dois minutos. Foi o tempo que durou entre eu saber que a lendária atriz Ítala Nandi estava em Salvador, lecionando na Ufba, até o momento em que fui apresentado a ela, já fazendo o convite para ela protagonizar o clássico do dramaturgo suíço.

Prontamente, reli a peça - fazia anos que havia lido - com aquele cagaço de, talvez, não gostar tanto quanto eu havia amado o texto, anos atrás. Gostei mais ainda e compreendi ainda mais porque ela figura na mais alta estante dos clássicos. Não à toa a peça teve uma carreira meteórica, tendo estreia mundial em janeiro de 1956 (ano da fundação da Escola de Teatro da Ufba!), e já em dezembro tendo sida estreada nalguns dos principais centros teatrais do mundo.

Dürrenmatt coloca no palco gente como a gente, para mostrar como todos nós estamos inevitavelmente enredados em nossas mediocridades e perversidades, expondo as entranhas de uma sociedade através do homem médio. Não são mais os reis, generais e papas que cometem as falhas trágicas, nem tampouco os pobres e miseráveis que se expõem em seu ridículo e ignorância. Ambos clichês são derrubados no sentido de apontarmos para nós mesmos o que, comodamente, olhávamos à distância.

Não há nada mais cômodo do que olhar as vilanias da aristocracia e dos poderosos, e a falta de educação dos miseráveis, dos pobres e ignorantes. Mas o teatro dá uma guinada que é acachapante e fundamental: os vilões e miseráveis somos nós. A discussão classista, entre o cômodo e o estigma, dá lugar a um espelho que atravessa nossa carne e reflete nossas entranhas, nossa alma, mostrando que o problema não está noutras classes, mas justamente em mim, em você que me lê, e nas pessoas que fazem parte de nossa realidade cotidiana.

Não é mérito apenas do teatro, claro. O próprio Dürrenmatt tem novelas e pinturas que vão no mesmo caminho.

Já como processo de pesquisa para o espetáculo, li, por exemplo, A Pane, uma novela do mesmo autor. Sempre ouvia falar dela, pois Eduardo Tudella, meu parceiro da Escola de Teatro e do grupo Teatro NU, sempre comentava sobre ela, e de seu desejo em fazer uma cenografia para uma adaptação do texto.

Na novela, um rapaz comum tem um problema em seu carro, parando numa pequena vila desconhecida. Lá, ele acaba sendo acolhido por um juiz aposentado. Em meio a um banquete com mais outros colegas, os comensais revelam sua diversão; simular um julgamento a base de champanhes, vinhos e guloseimas.

O rapaz, um caixeiro-viajante, aceita ser o réu, e a partir de então ele começa a se ver confrontado com suas ações cotidianas. Pequenas corrupções, traições, uma combinação de medíocres mesquinharias e vilanias que poderiam ser feitas por qualquer um de nós. Não se invadiu um reino, ou se roubou um pedaço de pão. Não se duelou pela disputa de um trono, nem fez-se uma trapalhada por conta da ignorância.

Alfredo, o caixeiro viajante, se vê exposto no que ele, e nós, mais temos de ruim. E assim, a novela de Dürrenmatt vai rasgando os véus da hipocrisia. E faz o mesmo com A Visita da Velha Senhora.

Não é à toa que o nome do personagem a ser confrontado com suas medianas vilanias também é Alfredo. Confesso que só vendo a coincidência que fui buscar o significado no nome, e a escolha guarda profunda ironia.

Não vou aqui contar a história da peça. Prefiro que você vá ao Teatro Martim Gonçalves, em setembro, ver nosso espetáculo. Queria mais era elaborar um breve questionamento sobre personagens e enredos em nosso mundo atual.

Sempre me vem à mente a frase de Arnold Hauser: “os períodos em que a moda é ditada por uma classe social que acredita em seu triunfo final não são favoráveis ao drama trágico”.

Seu estudo A Origem do Drama Doméstico, parte de seu livro História Social da Arte e da Literatura, é uma das grandes referências teóricas do pensamento teatral alemão, e busca analisar o novo drama que surgia da e para a classe social nova que começava a assumir postos de poder, e ser parte preponderante da sociedade; a classe média.

Essa classe queria se ver em cena, queria ver seus conflitos, sua realidade, reivindicava que não havia mais espaço para que se ficassem falando de heróis, tragédias, reis, deuses, generais. Os temas e protagonismos agora deveriam ser outros.

A classe média acreditava em seu triunfo. E que conseguiria segurar firme a rédea da história. E com isso, queria sua representatividade nos palcos. Mas… acreditando no triunfo. A dramaturgia do período acabava por se ancorar em clichês, em maniqueísmos, em denunciar vítimas e algozes, mocinhos e bandidos. E com uma resolução moral para seus dramas, mesmo que através da expiação.

Como diz o próprio Hauser: “[...] foi realmente uma transformação decisiva quando o século XVIII fez dos cidadãos comuns da burguesia os protagonistas da ação dramática séria e significativa, e mostrou-os como as vítimas de destinos trágicos e representantes de elevados princípios morais”.

Ibsen nos salvou de uma dramaturgia medíocre, rasa, cuja função primeva de se expor, nos palcos, conflitos e contradições, acabou por virar uma cartilha do certo e do errado. Sua importância foi se esvaindo com o tempo, pois as portas que ele escancarou deram vazão a toda uma literatura também incrível no século XX, como foi o caso de Dürrenmatt. E, com isso, perdeu-se a dimensão do seu feito.

Perdeu-se a dimensão do seu feito, e muitas vezes sequer chegou-se a tocar em sua conquista.

O caminho crítico, autocrítico, espelhando nossas entranhas e contradições, que tão bem se seguiu na dramaturgia dos últimos 200 anos, não parece ter chegado a ser um avanço no trato do drama.

Ainda há uma cômoda apreciação dos conflitos exteriores à realidade pessoal. Ainda se busca nas pobres vítimas e nos ricos vilões, por exemplo, os confortáveis dramas a serem tratados na literatura e nos palcos.

É mais fácil falar do outro. Se apiedar ou condenar outrem. Apontar o dedo para o desigual. Adotar os grupos sociais, diferentes do seus, mas que lhe interessam e causam pena, e condenar os grupos sociais que lhe causam repúdio, como detonadores dos males da sociedade. Fica-se numa redoma em pretensas condições normais de temperatura e pressão, enquanto externamente acontecem as grandes batalhas de sobrevivência, luta, desigualdade e injustiça.

São escolhas de quem cria e de quem consome a criação. Não existem verdades, nem erros e acertos. São escolhas.

Eu, particularmente, fico bastante incomodado em ver como ainda hoje se buscam fora de nós os algozes e as vítimas das desgraças da humanidade. Temos erros e falhas suficientes para que possamos nos confrontar com o radical espelho das artes e da literatura e pensarmos sobre nossas próprias deformações.

Porque, no fundo, somos nós que estamos em pane e a arte, assim como os comensais da novela de Dürrenmatt, poderia e, penso eu, deveria nos desvelar os círculos infernais aos quais descemos cotidianamente, sem tercetos decassílabos com rimas alternadas.

Ou até mesmo com tercetos decassílabos em rimas alternadas. Porque clássicos como A Divina Comédia, de Dante, Shakespeare e Machado de Assis viraram clássicos por isso. Falando seja de quem for, seguiram expondo o pior da gente.

E muitas vezes quem lê e assiste, de um lado, e quem escreve e encena, do outro, preferem o caminho mais tranquilo de apontar, nos outros, o que de pior há em si.