Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Gil Vicente Tavares
Publicado em 11 de março de 2025 às 16:58
Eu não gosto das sinfonias de Mozart. >
Para dizer isso, tive que ouvir e reouvir. Consultei a maioria das pessoas da área, pedindo indicações de alguma sinfonia que eu pudesse gostar mais. Indaguei sobre o que de diferencial poderia haver na orquestração, modulações, harmonias, formas, que talvez me fisgasse.>
Demorei a admitir, mas hoje em dia posso dizer que não gosto das sinfonias de Mozart.>
O que, nem de longe, pode e deve soar como: eu acho as sinfonias de Mozart ruins. Ou ultrapassadas. Ou chatas. Ou seja lá que adjetivo idiota eu resolvesse dar a uma obra de arte que, como todo clássico, segue atemporal e indiscutível. Seria pretensioso, ou, mais ainda, estúpido de minha parte falar algo assim.>
Eu não gostar passa pelo simples fato de não ser o tipo de sinfonia que eu gosto de ouvir. E totalmente por uma questão minha, e não da obra de Mozart. Me apraz muito mais o caos, a dissonância, a irregularidade, quebras bruscas, melodias tronchas que o tom harmonioso, apolíneo, bem acabado, em suas sinfonias.>
Eu, como aprendiz de artista, mais do que o público em geral, tenho uma imensa responsabilidade em proferir determinadas sentenças, conclusões e opiniões. Tenho por obrigação primeira me munir do máximo de conhecimento possível, para discorrer sobre uma obra ou artista, fazendo um juízo de valor sobre a mesma.>
Lembro quando certo escritor ganhou o Prêmio Nobel e foi festejado Brasil afora. Nunca tinha lido. Como gostava muito das entrevistas e depoimentos do mesmo, fui aos livros. Pedi indicações. Não consegui terminar o primeiro. Disseram-me: ah, mas é porque você não leu tal romance. Fui a ele. Não passei da décima página. Voltarem a me dizer, mas o melhor dele é aquele, adaptado ao cinema, metáfora incrível de nossos tempos (frase que normalmente teria criado uma rejeição em mim, mas resolvi tomar como qualidade da obra). Li até o fim. Foi uma das tarefas mais desprazerosas de minha vida. Mas li.>
Pois bem, decidido de que não gostava, e até achava ruim, mesmo, sua escrita, desisti. De repente, em conversa com um renomado escritor, exponho minha opinião, recebo uma concordância, mas comento sobre um livro do tal Nobel que muitos fazem deferência e eu não havia lido ainda. Meu amigo escritor me falou que realmente era um belo livro. Está aqui, me esperando, na pilha das frustrações de um pai presente.>
Venho desenvolvendo um olhar cada vez mais apurado sobre o teatro. Mérito nenhum meu. Os dez anos como professor universitário obrigaram-me (ao menos assim penso que deveria ser) a sempre me atualizar em bibliografias e espetáculos, estéticas e pensadores. Sobretudo, as orientações que venho realizando para os mais diversos caminhos estéticos seguidos por estudantes, em suas montagens, têm me ensinado muito sobre a cena, as marcações, conduções de elenco e personagens, elementos visuais e questões éticas e estéticas mais profundas do espetáculo.>
Na contramão desse meu eterno aprendizado experienciando coisas, tem me causado impressão, de maneira recorrente, a reação de estudantes ao teatro realista, quando ministro o componente Laboratório de direção teatral: a cena fechada. Estudantes sempre vêm cheios de verdades irretocáveis sobre o realismo no teatro, e sempre de maneira negativa; não gostam do realismo. Só que com um detalhe bem significativo. Nunca, jamais, em hipótese alguma viram alguma peça realista feita exatamente nos moldes que, tecnicamente e artisticamente, se entende por realismo. E provavelmente nunca verão. Primeiro, porque o realismo, da maneira como foi feito, durou pouco no teatro e é reflexo de uma época, o final do século XIX e início do século XX. Segundo, porque rapidamente o realismo foi se metamorfoseando, se renovando e se reciclando em diálogo com outras estéticas, tempos e pensamentos. E terceiro porque em Salvador, ao contrário dos grandes centros, não temos atualmente uma cena profissional robusta onde caibam produções nesse caminho; mesmo que atualizado.>
Como não gostar de um estilo que jamais foi apreciado? É como se alguém resolvesse dizer que não suporta os jantares que eram oferecidos a Cleópatra. Ou alguém nascido num país tropical, e que nunca saiu dos trópicos, ser enfático em dizer que não gosta de esquiar no gelo.>
A situação se torna mais grave porque se existe uma estética, um estilo, tema, assunto, conteúdo que compreende um semestre de uma faculdade, há uma razão para aquilo. O realismo, na história do teatro, é um momento crucial de virada na história dessa arte. Podemos falar em um antes e depois de Ibsen, e um antes e depois de Stanislavski, só para começo de conversa. O primeiro revolucionou a dramaturgia, ao mudar um teatro feito para agradar à moral, aos gostos e aos costumes, e com seu texto atacar isso tudo. A dramaturgia jamais seria a mesma, e mesmo seus críticos e opositores do futuro só teriam feito o que fizeram porque antes Ibsen fez o que fez.>
Quanto a Stanislavski, basta dizer que foi o homem que primeiro pensou um sistema em que o ator pudesse trabalhar seu personagem de maneira profunda, com técnica, pesquisa, sendo dono de seu ofício, propiciando, com isso, em consequência, que direção, cenografia, iluminação e mais artistas do palco mergulhassem em técnicas, pesquisas, coisas que antes não eram pensadas no teatro. É a grande referência e base para todos que se aprofundaram no trabalho do ator. E nunca foi superado em sua essência.>
Há muito mais a se aprender com o realismo, sabendo-se que o exercício de montar algo realista passa muito mais, para não dizer tão somente, pelo processo de compreender a técnica apurada de uma dramaturgia crítica e complexa, com curva dramática, com personagens complexos numa situação crítica, para os quais elenco, direção e equipe artística lançam mão de técnicas, exercícios, processos, laboratórios e estudos. >
Emular qualquer estética e estilo é algo ingênuo e inútil, porque é revisitar o passado com cheiro de mofo. Buscar nas estéticas e estilos pregressos tudo que eles têm a nos oferecer é a pedra de toque no aprendizado das artes.>
E não é com opiniões sem fundamentos, dizendo que não se gosta disso ou daquilo, que surgirá um teatro autêntico, diferente, autoral, novo, transgressor, experimental, ou seja lá que pretensão se tenha. É justamente compreendendo profundamente a evolução - sim, aqui se pode usar evolução sem uma perseguição acadêmica ao termo - dos estilos, técnicas e formas, que pode-se chegar a caminhos estéticos mais complexos, fundamentados e elaborados; como deve se pretender alguém que busca ficar quatro anos numa universidade estudando uma área específica.>
Até aceito que alguém, notadamente da área, diga que não gosta do realismo. Mas para isso a pessoa precisa conhecer, estudar, insistir e ter profundo conhecimento do que é o realismo, para assim embasar seu desgosto. Mais do que justificar seu gostar, a pessoa tem que conhecer muito e complexamente para não gostar.>
É preciso aprender bastante para não gostar das coisas, penso eu.>
Contudo, mais ainda do que aprender a não gostar, devemos insistir em aprender a gostar; principalmente dos cânones, dos clássicos, dos e das que fundamentaram e sedimentaram o caminho que ora seguimos.>
Como as sinfonias de Mozart, que vez por outra insisto em tentar ouvir, e o tal escritor do Nobel, que sigo sem gostar, mas que mesmo assim está na minha lista para ser lido.>