Vocês estão é ficando malucos por causa de religião

Muita gente no mundo vive sem Jesus, sem Deus, sem espíritos e sem orixás nem caboclos incorporando em ninguém

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 19 de outubro de 2024 às 08:00

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Eu sei que o mundo anda pra frente e pra trás e que o Brasil tem o hábito de recuar bastante na hora dos passos pra trás. Tô ligada na função da religiosidade, também que a fé aumenta conforme as carências do povo e que os líderes religiosos estão sempre trabalhando pra avançar e dominar territórios. Esse costume não é de hoje nem dessa ou daquela religião.

Outra coisa que eu compreendo é que nosso país sempre foi "religioso". Prioritariamente, cristão, essa herança da colonização lusitana. De boas, está posto. Nada disso vai mudar. Mas veja: para o que se esperava do nível de maturidade, elaboração e interação das pessoas no século XXI, vocês estão exagerando já.

No país todo e, inclusive, em Salvador, onde tenho observado a suspeita movimentação. Por exemplo, soube que na Ceasinha do Rio Vermelho, de manhã, toca “hino” de crente em tudo que é birosca, restaurante ou lanchonete. Proibido não é nem pode ser, mas não lembro de outro momento, nesta cidade, no qual comerciantes estiveram mais preocupados em converter transeuntes do que em vender.

Outra: minha amiga foi casar no cartório. Não quis nada de templo, pai de santo, padre nem pastor. Pois, mesmo assim, teve que engolir a “bênção” da celebrante, que proferiu palavras de fé e até Pai Nosso rezou. Dizendo ela que "todo mundo" acredita em Deus e que essa reza foi "Ele" quem ensinou. Os casais - gostando ou não - tiveram que esperar acabar o "culto" pra assinar os papéis, que é o que foram fazer lá. Nunca tinha visto isso, não.

Outro dia, pessoa muito chegada minha disse que tava escutando Larissa Luz e Luedji Luna, duas cantoras baianas da melhor qualidade. Aí, elogiou as batidas, ritmos e tals para, em seguida, exclamar: “mas é muito orixá!”. Concordamos. Direito delas cantarem e meu de pular a música. Porque, na real, já enjoei de a cada dois passos me bater com alguma entidade, algum “encantado” que precisa ser citado e adorado. Crendeuspai.

Sim, toda pessoa pode compor, dançar, adorar o que bem entender e chamamos isso de liberdade, que é justamente o ponto deste papo aqui. Não quero tirar onda de esperta, mas já tô velha pra não perceber o óbvio: na política, nas ruas, nas artes, nos restaurantes, no futebol, nas famílias, entre conhecidos, nos condomínios e em qualquer lugar, o que está acontecendo não é apenas uma “guerra entre religiões", como gostam de falar.

Problema é que voltou a ser corriqueira - para pessoas de várias religiões - a pretensão de interferir na vida espiritual alheia, o que sempre estará errado. Por exemplo, a minha fé é de sua conta? Não é. Nem a sua precisa passar por minha aprovação. Já vivi em um tempo no qual isso nem era assunto, inclusive. Muito menos crachá a ser exibido pra qualificar ou desqualificar alguém.

Convivo com amigos e amigas de diferentes espiritualidades e esse sempre foi apenas mais um traço de personalidade, questão de cada um. Fanatismo religioso é uma coisa que, até outro dia, eu nunca tinha visto pessoalmente, só conhecia de ouvir falar. Agora, é toda hora e em todo lugar.

O resultado disso não sou eu que vou analisar. Qualquer professor de história lhe conta que nunca deu certo quando o pensamento mágico de alguns pretendeu (e/ou conseguiu) se impor como verdade universal. Desde antes do "poder divino do rei", que estudamos no ensino médio. Tá lembrado? Pois é. Seja qual for a sua fé, se você acha boa ideia converter todo mundo, se imagine seguindo, obrigatoriamente, rituais de um conjunto de crenças diferente do seu. Insuportável? Você acha? Imagine o que penso eu.

Sim, porque quem pretende dominar, deve se preparar para, eventualmente, ser dominado. Quem caça tá sujeito a ser caçado. Por isso que acho mais seguro - para todos - respeitar a Constituição Federal que garante a liberdade de credo (e da ausência dele) para todos os brasileiros. Cada qual no seu quadrado e nenhuma religiosidade nos espaços oficiais da coletividade porque ninguém tem obrigação.

O Estado brasileiro não é ecumênico, criatura. Ele é laico, o que é muito diferente. Ecumênico significa a inclusão de todas as religiões. O Estado laico (caso do nosso), por sua vez, não pode tomar decisões influenciado por qualquer religião. Nem permitir rituais religiosos em seus espaços. Na teoria, somos civilizados, não é? Chiquérrimos! Elegantíssimos! Só que, na prática, a teoria é outra e isso tem um motivo que vou explicar.

No Brasil, 89% das pessoas acreditam em um “poder superior”, então parece que ter "fé em Deus" é algo natural. Estamos no primeiro lugar do ranking de 26 países feito pelo instituto de pesquisas Ipsos. Você sabe que viver por aqui não é fácil, e a religião tem mais importância nos países onde o PIB per capta (riqueza de um país em relação à quantidade de habitantes) é menor. Ou, claro, onde há muita desigualdade social. Exatamente nosso caso.

É que a religião – seja ela qual for – se coloca onde o Estado falha. Elementar. Se a pessoa não consegue exercer direitos, se não tem as necessidades básicas atendidas, vai buscar consolo no além. Quanto mais desgraça e desamparo coletivos, mais protagonismo da fé. Não estou inventando nada, pode pesquisar. Ou apenas observar a si mesmo, porque todos somos assim.

Qualquer um de nós, na hora do medo, da dor e da doença, apela logo pro "mistério". Então, quando esses sentimentos são coletivos, obviamente, o fanatismo (e o poder dos tais “líderes religiosos”) nada de braçada nas multidões. Conforme você sabe, no Brasil (não sem razão) há muita gente desesperada. Pronto, tá bem desenhado o cenário que vai resultar nesse ambiente que vivemos hoje.

Não é assim em qualquer lugar. Na Holanda, por exemplo, onde o povo vive direitinho, apenas 40% das pessoas creem no “poder superior”. Na Coreia do Sul são 33% e no Japão só 19% mesmo. Você pode até achar que a vida deles não é lá essas coisas. Quem sabe até afirmar que aqui é melhor porque não tem furacão.

(Terremoto tire da lista porque já fomos agraciados também.)

Seu direito. Porém, se olhar para esses números – e outros disponíveis por aí – vai perceber a única coisa que importa aqui: muita (muita!!!) gente no mundo vive sem Jesus, sem Deus, sem espíritos e sem orixás nem caboclos incorporando em ninguém. Mesmo assim, o pessoal tá muito bem.

De posse dessa informação, veja se nosso comportamento está maduro e equilibrado. Não está de jeito nenhum. Se crer ou não em um "poder superior" é opcional, que dirá a escolha do "ser" em que se vai acreditar. Existem mais de dez mil religiões no planeta e só o conhecimento desse fato já deveria ser suficiente pra qualquer crente (de qualquer religião) se colocar no próprio lugar.

Precisamente, o lugar da humildade em que todos devemos estar. Dentro da consciência de que "sei do que serve pra mim, mas não para o outro". Leia de novo: são DEZ MIL religiões mapeadas no planeta, dez mil tentativas coletivas de organizar o que NINGUÉM sabe, de fato. Fora as seitas que surgem e desaparecem sem que sejam registradas. Diante disso tudo, A VERDADE é só a que você acredita? Ah, tá.

Como diria a pensadora Xuxa, "senta lá, Cláudia". Faça sua oração, toque seu atabaque, acenda sua vela. Faça suas promessas, se vista como achar que deve, coma o que quiser. Faça suas peregrinações, suba escadas de joelhos, acredite no que tiver vontade. Mas entenda, pela bênça de sua mãe, que sua crença é um problema seu.

Ou é a sua solução, vá lá, cada pessoa sabe de si. A neurociência diz que a fé é um "poder" que, independentemente do objeto, pode até curar pessoas. Eu acredito, mas por aqui não tô vendo isso não. Muito pelo contrário, inclusive. Pelo menos neste momento, vocês estão é ficando malucos por causa de religião.

(E chatíssimos, não tem quem suporte.)

(Esta, uma verdade incontestável.)

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo