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Flavia Azevedo
Publicado em 22 de fevereiro de 2025 às 08:00
Minha amiga lembrou que as regras eram claras: “você tinha que dizer que morava na Pituba, no Rio Vermelho ou no Caminho das Árvores, se fosse um bairro popular era recusado”. Eu acho que Vitória, Graça e Barra também funcionavam. Mas tinha que ser “branquinho e bonitinho”, ou não entrava de jeito nenhum. Estamos falando do processo seletivo, explicitamente racista, pelo qual os foliões que quisessem sair em “blocos de elite” eram obrigados a passar. Mas onde, isso? Em Salvador da Bahia, pessoal! Em nosso Carnaval! Nos anos 1990, era desse jeito, sem tirar nem por. >
Naquela época, todos os blocos tinham sede. As dos blocos “de elite” ficavam na Barra e os abadás eram vendidos por “comissários”. Os comissários eram pessoas “populares” que circulavam nos colégios, clubes e outras rodas frequentadas por jovens endinheirados, brancos e residentes nas áreas nobres da cidade. Conhecer um desses comissários – representantes de blocos como Beijo, Eva e Cheiro, entre outros - era mais um privilégio de brancos ricos, mas este podia ser parcialmente dividido com os amigos mais chegados. Desse modo, os contragolpes eram armados.>
Na prática, funcionava assim: se a pessoa fosse preta ou parda, moradora de um bairro popular e tivesse dinheiro pra comprar o abadá, a amizade com um branco da área nobre era a única chance de, adulterando dados, tentar uma chance de desfilar. E olhe lá. O amigo “padrão” prometia conseguir um formulário (impresso em papel) com o comissário e quando a promessa era cumprida, a primeira vitória se concretizava. Aí, a pessoa levava o formulário pra casa. Lá, com todo o cuidado, preenchia (de caneta). Eram pedidos nome, telefone (fixo, né?), outros dados e o bendito endereço. Nesse campo, a pessoa que não era da “elite” escrevia o endereço de alguma amizade mais abastada. Normalmente, o da pessoa que conseguiu o formulário.>
O telefone também era uma questão. Lembro que rolava a conversa de que, pelo prefixo, o bloco poderia saber que a pessoa morava em Periperi, por exemplo, e não na Vitória. Ou no Cabula, em vez da Pituba. Ou no Imbuí e não no Caminho das Árvores. Aí, o pedido seria recusado. Então, algumas pessoas também colocavam o telefone dos outros no tal formulário. A foto, porém, era o maior problema. De rosto, bem de perto e todo mundo se “embranquecia” o máximo possível pra conseguir ser aprovado. Cabelos sempre alisados e/ou presos, no caso das mulheres. Nos homens, a máquina de raspar “ajudava”.>
Depois de toda a operação, o formulário era devolvido ao comissário (ou entregava na sede do bloco) e a pessoa ficava na ansiedade pra saber se seria aceita ou não. Uma vez aceito o cadastro, chegava o carnê (em papel, um talão) e o folião pagava o “ingresso” durante o ano inteiro, em prestações. Perto do Carnaval, era tirar um dia para ficar na fila de entrega dos abadás e pronto. Na hora era só ir devidamente vestido e passar para o lado de dentro da corda pra pular o Carnaval entre brancos abastados, "protegido" de negros, pelos negros que seguravam (e ainda seguram) as cordas . >
Hoje, o flagrante de uma situação assim daria polícia e passaria no Fantástico. Seria escândalo nacional. De modo que, se ainda fazem, não é mais explícito como já foi. Nessa época, geramos imagens vergonhosas de milhares de pessoas brancas passando dentro de blocos, pelo meio das ruas no Carnaval, enquanto pessoas negras se espremiam nas laterais. A violência das cordas, a necessidade de trios independentes, tudo isso é discutido, há anos, em Salvador. Sim, avançamos. Mas não podemos esquecer - para que não se repita - o que passou. >