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Flavia Azevedo
Publicado em 28 de março de 2025 às 17:38
Todos nós fomos informados de que, hoje (28), o Tribunal Superior da Catalunha anulou a condenação - por um estupro, em 2022 - do ex-jogador brasileiro Daniel Alves. Por esse motivo, a “machosfera” (já assistiu à minissérie “Adolescência”, na Netflix?) está em êxtase. Não, não é uma comemoração dos homens, em geral. Alguns, perto de mim, estão bem revoltados. Também não é a celebração de pessoas que amam a justiça, inclusive duvido que conheçam o processo em detalhes. O festim da “machosfera” não comemora a vitória da verdade, apenas acontece toda vez que qualquer homem consegue “vencer” uma mulher, por mais que esteja errado. De preferência, acabar com ela. Um clássico! Nenhuma novidade. Ou seja, esse caso é ótimo exemplo de um tema bastante estudado. Então, vamos aproveitar. >
O saudoso psicanalista Contardo Calligaris (1948-2021) já disse o seguinte: “Os textos inaugurais de nossa cultura – tanto do lado judeu/cristão quanto do lado grego – colocam a mulher como a representante do mal. Isso está no coração da nossa cultura. A mulher é o lugar onde todos – homens e mulheres, aliás – projetamos o mal que nos persegue. Uma civilização construída inteiramente em cima do mito de Eva, como aquela com quem o demônio fala e para quem o demônio fala. Essa representação está no coração da nossa cultura. Então, o ódio pelas mulheres não é um acidente. A misoginia está no coração de quem nós somos.” Já fez as sinapses e conexões? Mesmo assim vou desenhar, porque quero ter certeza de que você entendeu o motivo da reviravolta do caso, assim como a comemoração dos homens mais ordinários. >
Daniel Alves tem três versões sobre o fato. Todas foram desmentidas pelo testemunho da vítima e por exame de corpo de delito que atestou, na mulher, lesões compatíveis com estupro. Por isso, Daniel foi condenado a 4 anos e 6 meses de prisão pelo crime cometido, em uma discoteca de Barcelona, em 2022. Na terceira versão, Daniel diz que “transou” com a moça. A mesma que, no começo, ele afirmou que nem conhecia. Agora, a anulação da pena chega com a “justificativa” de que a palavra DA MULHER estuprada – mesmo associada à perícia atestando que ela foi machucada – NÃO É CONFIÁVEL. Veja bem: ficou PROVADO, por ele mesmo, que Daniel mentiu, pelo menos em duas versões da história. A terceira versão - a de sexo consensual - foi derrubada pelas lesões encontradas no corpo da vítima . Mas é a palavra DA MULHER que não é confiável. Olhando assim, você não fica chocado? >
O veredito espanhol funciona como mais uma prova de que é verdade o que afirma Calligaris e que, desde menina, eu já desconfiava: o ódio às mulheres está na estrutura de quase todas as nossas relações e, ainda por cima, nos poderes executivo, legislativo e judiciário. Aliás, no judiciário é que, desde os primórdios, isso nunca não falta. Por exemplo, em 2002 – portanto há apenas 23 anos – homens ainda podiam, no Brasil, legalmente, anular casamentos, caso afirmassem que a mulher não era mais virgem, antes da primeira noite do casal. A motivação caiu no ridículo, claro, porque NÓS construímos a nossa liberdade sexual. Porém, lá nos papeis, ainda havia a possibilidade legal. >
Agora você imagine que, quando se usava desse expediente, o “diagnóstico” era feito pelos próprios homens, ou seja, por seres que – até hoje - nem sempre conseguem encontrar nossos clitóris, que dirá – naquela época - avaliar outros acessórios mais resguardados. Sinceramente, faz algum sentido? Mas a PALAVRA do homem - independentemente da qualificação ou moral do indivíduo – sempre teve prioridade hierárquica e, em muitos casos, é usada com o único propósito de jogar mulheres em desgraça. Nessas anulações de casamento era, exatamente, o caso. Imagine como viveram, antigamente, essas esposas que foram rejeitadas porque os maridos disseram que "estavam sem o lacre".>
E aí? Como faz? A gente continua trabalhando e vencendo pelo cansaço. Veja que, até outro dia (1977), toda mulher era obrigada a usar o nome do marido, assim como se fosse gado ferrado pelo proprietário. Hoje, isso nem tem mais graça. Lembre que, só em 1979, o futebol deixou de ser proibido pra mulheres e já conseguimos produzir uma Marta! Também que, em 1962, mulheres precisavam da autorização do marido pra trabalhar fora, receber herança, comprar ou vender imóvel, assinar documentos e viajar! É tanta loucura que a gente nem acredita, olhando pra trás. Mas a vida já foi assim e todos os direitos que temos, hoje, são conquistas nossas, nada foi “presente” de homens ou do acaso. Assim como será conquista nossa quando a gente puder rir do tempo em que um homem que mente publicamente tem mais credibilidade do que uma mulher que fala a verdade e tem como provar. Por fim, minha solidariedade à vítima de Daniel Alves.>