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Tem muita gente assistindo “Ainda estou aqui” sem entender o recado

Não sei se o público consegue juntar os pontinhos e relacionar causa e consequência daquilo tudo

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 23 de novembro de 2024 às 08:16

A sessão na qual assisti ao filme brasileiro que nos orgulha também por ter conquistado mais de um milhão de espectadores, em 11 dias de exibição, estava lotada. Ao final da projeção, as pessoas saíram da sala em silêncio, visivelmente comovidas. Alguém chorava copiosamente, duas fileiras atrás da nossa.

Indicado pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil na disputa pelo Oscar 2025 - na categoria de Melhor Filme Internacional - o longa, dirigido por Walter Salles, conta a história real de uma família destroçada pelo regime militar no Brasil da década de 1970.

Essa família tem o sobrenome Paiva e é composta por Rubens, Eunice e cinco filhos. Depois de ter o marido sequestrado pelos militares, Eunice – que era apenas uma dona de casa – precisa reconstruir a si mesma e o núcleo familiar, enquanto busca, obcecadamente, respostas sobre o paradeiro de Rubens. Conforme sabemos, ele foi assassinado pelo Estado.

A depender da idade e dos (des)interesses na vida, é absolutamente compreensível que o espectador, em 2024, não faça ideia de quem foi Rubens Paiva. É possível que boa parte do público sequer saiba mais do que cai no ENEM, sobre o golpe e o período em que vivemos sob o regime militar. Normal.

O filme conta com essa ignorância e faz sentido mesmo na falta de referências históricas. “Ainda estou aqui” tem potencial para provocar despertares. Saí do cinema otimista, até imaginando o longa - tão acessível - exibido em salas de aula, como material didático. Só que dias passaram, notícias chegaram e pensamentos sobre o que somos têm me feito companhia desagradável.

Passo os olhos nos jornais, abro redes sociais e duvido da nossa cognição. Sinceramente, não sei se o público que tem saído emocionado dos cinemas entende que aquilo não é ficção. Mais ainda, não sei se consegue juntar os pontinhos e relacionar causa e consequência, mesmo com a direção didática, linear e sedutora de Walter Salles que se esforça para mostrar que a família Paiva poderia ser a de qualquer um de nós.

(O filme busca empatia priorizando o drama dos indivíduos. No império do “eu, eu, eu” que vivemos, considero acertadíssima decisão.)

Acho que tem muita gente assistindo “Ainda estou aqui” sem entender o recado. Veja: o filme traz a fotografia de uma, entre tantas famílias comuns destruídas pelos militares que assumiram o controle do Brasil com o golpe de 1964. Esse golpe que foi possível porque boa parte da população estava seduzida por um discurso nacionalista, desenvolvimentista e anticomunista. Isso não te lembra nada não?

O regime militar - que durou 21 anos (1964-1985) - acabou quando eu tinha 11. Ou seja, vivi - ainda criança - os anos finais desse tempo que nos parece mais distante do que é de fato. A realidade de ter crescido já em regime democrático, me faz também quase perceber aquela época como ficção. Distanciada, justamente, pelos imensos avanços políticos e comportamentais que tivemos desde então.

Nesse tempo, acreditamos no sono profundo das Forças Armadas, brincamos que o exército não faz mais do que pintar meios-fios e nos incomodamos apenas com as notícias de que as viúvas deles recebem gordas pensões. Seguros de que eles - como instituição - se retiraram da política, tratamos militares como tiozões meio abobalhados que não representavam mais qualquer ameaça à democracia.

Ridicularizamos patentes de quem ocupou cargos públicos, demos risada das condições dos tanques que desfilaram em Brasília e cheguei a escutar de amigos bastante informados que "o exército não tem mais interesse em assumir o poder no Brasil". Discordar disso parecia papo de doidão. "Os tempos são outros", diziam. Será?

Talvez, além de se emocionar com uma história individual, para entender o “Ainda estou aqui”, a gente precise se lembrar de que os 40 anos que nos separam do regime militar não são nada na linha da história. Outro dia mesmo a imprensa sofria censura oficial, direitos políticos eram restritos e quem não concordasse com o regime sofria perseguição do Estado. Ainda ontem, torturas, estupros e “desaparecimentos” de pessoas – inclusive de adolescentes - , por motivação política, era algo bem comum.

O voto direto, o respeito aos resultados das urnas, o direito de ir e vir. Tudo isso parece garantido e a maioria de nós não se lembra do caminho até aqui. Para quem não viveu aqueles tempos, a nossa democracia parece inabalável, só que não é. “Ainda estou aqui” - essa frase que dá nome ao filme - pode ter muitas leituras. Uma possibilidade é pensar na ameaça que – leia os jornais - nunca foi embora. Veja as notícias, confira as listas e perceba que eles ainda estão. Acho que, mais do que a narração de uma história, o recado está dado e é esse aí.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo

A OPINIÃO DA COLUNISTA NÃO REFLETE, NECESSARIAMENTE, A DO JORNAL CORREIO